25.10.07

Geografia afectiva


C'est se taire et fuir, s'offrir à temps
Partir avant de découvrir
D'autres poisons dans d'autres villes
Et en finir de ces voyages immobiles.

(
Les Voyages Immobiles, Etienne Daho)


"Amar pela simples beleza do gesto"

Foi este o verso que me ficou a ecoar na cabeça depois de ter visto As Canções de Amor, um filme de Christophe Honoré ― produzido pelo português Paulo Branco ―, que esteve em competição no último Festival de Cannes e estreou entre nós na semana passada. É uma estória em três actos sobre errâncias, vazio, solidão e amor, em que Paris ― ou o anjo da Praça da Bastilha ― é mais do que um mero pano de fundo e as canções, as tais canções de amor, são mais do que um mero fio condutor.

- Já amaste pela simples beleza do gesto de amar?

Mais do que uma pergunta, Erwann, o liceal romântico do filme que aparece para baralhar as regras do jogo, coloca-a quase como um desafio ao melancólico e perdido Ismaël. Sentado na poltrona, abandonei por segundos o lugar confortável do que se limita a observar de fora e pus-me na pele do visado.
E nem foi preciso reflectir muito para saber o que responderia se fosse comigo. Não. Eu responderia não, porque, por mais que possa achar tentadora a ideia de amar só pelo prazer de amar, não me chega ― e duvido que algum dia venha a bastar. Não sei se isso faz de mim melhor ou pior pessoa. Melhor ou pior amante. Mas preciso amar (alguém ou algo) em concreto e não em abstracto.

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E já que falo de filmes, estreia hoje A Outra Margem. Se calhar, como a grande maioria dos portugueses, tenho uma relação complicada com o cinema nacional, mas este deixou-me curioso depois de ver a sua apresentação e de ter lido na Única (jornal Expresso) uma entrevista lúcida e inteligente de Filipe Duarte, que interpreta Vanessa Blue, um travesti amargurado, vencedor do prémio de Melhor Actor ― ex-aecquo com o jovem, portador do Síndroma de Down, que contracena com ele ― no Festival de Cinema de Montreal.

22.10.07

A chuva


Ô chuva, vem me dizer
Se posso ir lá em cima prá derramar você
Ô chuva, preste atenção
Se o povo lá de cima vive na solidão

(
Segue o Seco, Marisa Monte)


Clarões atravessam a noite, deixando pegadas de luz no breu profundo. O céu não tardará a transbordar. Primeiro num choro envergonhado, quase sussurrado. Logo depois num pranto revolto; gotas rolam pesadas e caem com estrondo.
Ao largo, uma única janela iluminada. Não se adivinha vivalma. Só eles, as duas únicas sentinelas de vigília naquele farol ilhado.
Quer alcançá-lo, mas não sabe como. O seu olhar permanece à deriva, sem se deter no porto que ele lhe estende. Chega-se um pouco mais, disposto a preservar aquele instante. Na penumbra, a sua silhueta é como um desenho esbatido a carvão, mas o calor daquele corpo, e o odor que dele se desprende, tão familiar, dizem-lhe que não sonhou em vão. Ele existe e é tão real como a chuva fria que respinga na madrugada.
Num impulso, próprio de quem não tem a eternidade, agarra-se a ele como um naufrago e deixa-se ficar a flutuar naquele abraço. Amanhã é longe demais. E o tempo pára. Fica suspenso. Só a chuva continua a aguar a calçada. A boca desejada acerca-se finalmente da enseada. Primeiro de mansinho, quase sem lhe roçar a pele. Logo depois com determinação e vigor. O chão foge-lhe debaixo dos pés e ele capitula.
As duas línguas entregam-se a um duelo sem trégua à vista. Ora se emaranham, ora se soltam, para se voltarem a enredar num beijo há muito anunciado. Mas que esperou até ter a noite por única testemunha.
Ele recusa-se a largar o que resgatou da enxurrada. E nem sabe mais se é a chuva que teima em cair ou se são os seus olhos que se turvam para chorar um grande amor.

19.10.07

Eles e ela


Like the little school mate in the school yard
We'll play jacks and uno cards
I'll be your best friend and you'll be mine Valentine
Yes you can hold my hand if you want to
'Cause I want to hold yours too
We'll be playmates and lovers and share our secret worlds
But it's time for me to go home

(Big Girls Don’t Cry, Fergie)


A cena repete-se. Uma vez mais. Eu e a televisão. Desta feita, o meu zapping leva-me a aterrar numa dessas tertúlias obscuras do social cor-de-rosa. Discute-se, como se ainda houvesse algo de novo (ou de credível) a acrescentar, o caso de Diana com o playboy Dodi al Fayed. Alguém opina que o pai, o milionário Mohammed al Fayed, só teima na teoria da conspiração para não ser obrigado a enxergar o óbvio: Dodi era gay e ter-se feito acompanhar de uma bela mulher nos seus últimos dias de vida não prova o contrário. Vão mais longe; uma das especialistas na matéria, presente em estúdio e com ar de quem falava em causa própria, arremata: “o que não falta por ai são gays que desfilam para cima e para baixo com mulheres vistosas!”. Tomem e embrulhem.

Esta ladainha, em rigor, já tem barbas. Lembro-me mesmo der ter lido, certa vez, um artigo que se debruçava precisamente sobre elas, as tais mulheres que, num dado momento das suas vidas, preferem a companhia de gays assumidos ou não ― com casos de todos conhecidos como o de Geri Halliwell, a eterna GingerSpice, e George Michael ou ainda de Madonna e Rupert Everett ―, merecendo por isso a designação jocosa de Fag Hags.

Sosseguem… não me vou pôr a filosofar sobre as razões que poderão levar um gay a querer ser visto em público com uma mulher ― já há teorias de sobra e eu, para dizer a verdade, nem estou interessado na maioria delas! Mas a estória fez-me recordar um episódio vivido durante uma das minhas viagens de trabalho. Ia acompanhado por um colega mais novo, todo metido a garanhão, que me apresentou uma amiga de longa data que ali se encontrava radicada há vários anos. Ela, a amiga, uma mulher interessante, bem disposta, bem relacionada e solteira, disponibilizou-se para fazer de nossa cicerone algumas vezes. Numa dessas noites, a do seu 36º aniversário, convidou-nos inclusive para o seu jantar de comemoração. Na hora de nos sentarmos à mesa, feitas as apresentações, estranhei o facto de, tirando ela, sermos todos homens, mas não dei muita importância ao assunto. É claro que a dada altura, já depois de bem comidos e bebidos, até eu, que nasci com o “gaydar” avariado, não pude deixar de reparar que o grosso dos homens ali presentes era gay… gritantemente gay! Devo dizer que, dadas as circunstâncias, o meu colega, ponto seu, se portou à altura e não teve um daqueles chiliques clássicos que costuma acometer os heteros sempre que se vêem rodeados de gays por todos os flancos. Foi simpático e sociável durante todo o jantar.

Mas o pior estava para vir. Dali seguimos para uma festa que decorria, supostamente, no loft de um artista plástico. Mais uma vez, eu, sempre a leste do paraíso, achei tudo óptimo à entrada: pessoas de várias nacionalidades, música, bastante espaço e todos a servirem-se de bebidas na cozinha, o que me fez recordar as minhas wild parties quando estudava em França… Estava eu imbuído dessa nostalgia estudantil, quando o meu colega me chamou à parte e me pediu para olhar bem à volta… Admito que levei um susto! As poucas mulheres que se encontravam na nossa chegada tinham-se evaporado e o que havia com fartura era marmanjos, por todo o lado, e alguns deles já em fase avançada do amasso. Ele quis ir-se embora imediatamente e eu nem ripostei, pois, acordado para o propósito da festa, senti-me também deslocado. Procurámos a amiga dele, despedimo-nos e zarpámos. Ela ficou, como se nada fosse, rodeada dos seus amigos gays. Foi então, já no táxi, que ele proferiu uma frase que guardei:
- “Ela só vive rodeada de panascas para não ter de encarar que tem trinta e tal anos e está sozinha!”.
A tirada machista, mas que tem, quer se goste ou não, algum fundo de verdade, fez-me rir em silêncio. Não disse, mas pensei:
- “O problema maior dela, porventura, não é ter 30 e tal anos e viver rodeada de panascas! É, talvez, encontrar apenas tipos disponíveis como tu que, tirando a queca - transa - da praxe, não se mostram suficientemente interessantes para ela preferir a vossa companhia à dos ditos panascas!”.

Mas resolvi que ele já tinha tomado a sua dose por essa noite.

17.10.07

A Parede



A movement in the corner of the room!
And there is nothing I can do
When I realise with fright
That the spiderman is having me for dinner tonight!

(Lullaby, The Cure)


Rodopiamos
Embriagados pela luz

Sem despregar o olhar

Eu avanço
Tu recuas

Tropeçamos no ardor
Mas os corpos amparam a queda

Num compasso a dois tempos

Arremesso-te
Tu resistes

Faço-te girar
Tu rebates

A parede nua é a minha teia
Cerco-te por todos os lados

A minha língua é veneno
que te entorpece

Mas o desejo em ti aceso encadeia
Cego, apenas guiado pelo teu cheiro,
Devoro a tua boca

Sopro segredos ao teu ouvido
Os teus lábios devolvem murmúrios

São minhas as mãos que por ti deslizam
É tua a pele que se eriça ao meu toque

E porque a vertigem é passageira
Mas a ilusão pode ser eterna
Enredamo-nos na parede nua
Sem pressa dela sair.

14.10.07

Restart

Por Piero Fornasetti


Birds flying high
You know how I feel
Sun in the sky
You know how I feel
Breeze driftin' on by
You know how I feel
It's a new dawn
It's a new day
It's a new life
For me
And I'm feeling good

(Feeling Good, por Michael Bublé)


A cena repete-se. Eu, a televisão e umas quantas personagens que, de quando em vez, deixo entrar em casa, com direito, conforme o caso, a partilharem o sofá ou a cama comigo. Tenho particular predilecção pelas que, entre gargalhadas, me conseguem fazer pensar na vida. Como aconteceu uma noite destas:
Dois homens num restaurante discutem a relação.
(até aqui nada de novo; raros são os seriados que agora dispensam os gays nos seus enredos)

Um deles brinca e diz que nem teve de se preocupar em sair do armário, pois sempre se soube gay. E os outros à sua volta também.
(por essa altura eu já tinha decidido que era o outro, o que, pelo canto do olho, não parava de ver se as pessoas da mesa ao lado estavam a reparar neles ou a tomar atenção na conversa…)

Não satisfeito, resolve cutucar o seu companheiro e dispara à queima-roupa: “aposto que tu foste daqueles que demoram imenso tempo a assumir-se!”
(decididamente eu era o outro, o encurralado entre a pergunta incómoda e o desconforto de poder estar a ser alvo da curiosidade alheia…)

Mas eis que se sai com uma resposta de truz: “realmente demorei um bocado a tomar consciência de que era gay. Afinal, não nasci a gostar de musicais nem a perceber logo de roupa”.
(rejubilei triunfante… quando parecia que ia jogar a toalha no chão e balbuciar uma desculpa mal amanhada, ele mostrou-se à altura! Sempre dá muito jeito ter uma equipa de roteiristas a trabalhar as nossas falas!)

(Pausa para pensar no assunto)

Os musicais, dispenso-os. Faço parte dos zilhões que viram Cats ― mas em minha defesa posso sempre alegar que o meu (bom) gosto estava então ainda em fase imberbe... ―, vi O Fantasma da Ópera porque me obrigaram (!), mas quando tive a oportunidade de ir pela primeira vez à Broadway, vinguei-me. A maioria do grupo queria ir assistir a um dos musicais em cartaz, mas eu fui antes aplaudir a Natalie Portman, na altura uma miúda com ares de Lolita, que estava em cena numa versão teatral do Diário de Anne Frank. Escusado será dizer que me gabo disso até hoje…

Quanto à roupa… tenho dias. O certo é que ainda há bem pouco tempo, decidido a renovar o meu estoque de roupa interior, fui ao Corte Inglès. Gosto de ir ali por ser um espaço multimarca, mas, regra geral, o mais certo é ir direito à secção da Calvin Klein, onde escolho o modelo de sempre, nas cores de sempre: preto, branco e cinzento. Desta vez, porém, e porque a ocasião o pedia, resolvi “variar”. Não foi fácil, mas lá arrisquei nuns modelos da nova colecção ― para os mais distraídos: sim, também há novas colecções e tendências nas cuecas de homem! ―, com especial destaque para uns trunk encarnados ― os que estão a torcer o nariz, pensem duas vezes, pois não só o modelo fez sucesso entre quatro paredes, como se portou à altura num momento inspirado em que resolvi partilhar as tarefas domésticas e varrer logo pela manhã o chão da cozinha nestes preparos!