25.5.09

Amuse-bouche

The Prophecy, by Aymeric Giraudel


Para o final da semana, prometo um pouco mais de prosa, mas, para já, distraiam as vistas com o trabalho do fotógrafo Aymeric Giraudel (como música de fundo The Beast Within, de Madonna). Se acham a fotografia acima sugestiva, esperem até ver o vídeo da mesma... Aqui

11.5.09

Passar a mão pelo pêlo



Well somebody told me
You had a boyfriend
Who looked like a girlfriend
That I had in February of last year
It's not confidential
I've got potential
(Somebody Told Me, The Killers)


A meio da missiva, ele arma o laço já sem sequer se dar ao trabalho de disfarçar ao que está:
- "Pareces-me um belo espécime de puro lusitano."

Era suposto, acho, ter ficado envaidecido. De bola cheia. Em vez disso, fiquei a pensar que, definitivamente, não é por ai que me vão ver arreado. Mais. Se é para me domar, é bom que o encantador de cavalos saiba pronunciar as palavras certas. E ser tratado como um puro-sangue em dia de feira, a quem só falta, já agora, arreganhar os dentes, não me amolece, nem abranda o trote. Antes faz com que dispare, estrategicamente, em retirada.

4.5.09

Clones



I think I saw you in the shadows
I move in closer beneath your windows
Who would suspect me of this rapture?
(Black Hearted Love, PJ Harvey and John Parish)


Hi5, orkut, facebook, twitter... A todas elas eu torcia o nariz, mas, instigado por amigos ou pela curiosidade, a desconfiança inicial, justificada ou não, acabou por abrir brechas. Não veio dai mal ao mundo, pensei quando cedi pela primeira vez... Só que a tentação de espreitar pelo buraco da fechadura é uma coisa lixada - diria mesmo que perversa - e, de cedência em cedência, só praticamente o hi5 não me levou a melhor até hoje.

O que fazer quando a fraqueza humana, mais do que sugerida ou permitida, é estimulada, induzida? Nos últimos tempos, confesso, não resisti a espreitar a várias janelas no cada vez mais escancarado universo rainbow. Fi-lo não tanto movido pelo instinto de caça - embora também não esteja acima de suspeita -, mas mais pela adrenalina de poder andar por ali a bisbilhotar à vontade, sem compromisso e sem culpa - porque o risco de passarmos nós a ser o alvo da curiosidade alheia faz, desde logo, por muitas precauções que se tome, parte das premissas do jogo.

Nem fui mais longe, fiquei-me apenas pela rede portuguesa do facebook. Primeira conclusão óbvia: a avaliar pela amostra, não se pode chamar universo ao que não passa de uma aldeia. Se (ainda) não se conhecem todos, a rapaziada de uma certa comunidade gay imita muito bem. Chega a ser assustadora a facilidade de encontrar quem se procura - e quem se acha sem estarmos sequer à procura... Adiante. Próximo reparo: fico pasmo com a quantidade de gajos po-dres de bons no pequeno burgo de Lisboa e arredores (onde é que se escondem, durante o dia, essas criaturas?). Nem é que sejam todos bonitos, muitos têm é corpos de fazer inveja (inveja a tipos como eu, entenda-se, que não passo da cepa torta apesar das boas intenções...).

Como não é um meio onde me mova ou interaja, qualquer que fosse a direcção seguida, eu sentir-me-ia, inevitavelmente, um penetra num clube só para sócios. Guiei-me na minha busca por algumas referências, não só estéticas, que pudessem ser comuns e fiquei, não digo surpreso, mas intrigado quando, independentemente da profissão ou do nível intelectual - e sim, tenho plena consciência de que, ao ligar-me a estas variáveis, já estou a fazer um (pré)julgamento -, 8 (vá lá, 7) em cada 10 gajos parecem gémeos idênticos... O mesmo tipo de compleição física (com cinturas de vespa capazes de fazer inveja a muita menina e quase invariavelmente depilados de alto a baixo), de corte de cabelo, de acessórios (com destaque para os óculos de aviador, as camisas cintadas e as t-shirts com decote em V coladas à silhueta), de poses e até de cenários [das boates Frágil ou Lux até às mo(á)vidas de Ibiza ou Miami]...

Dá que pensar... Sobretudo, quando eu, repito, me tenho mantido à margem de toda esta realidade paralela e, ainda assim, já me reconheço nalguns (não todos, felizmente) tiques. M-E-D-O.

27.4.09

Arejar o armário

Marc Jacobs, Kate Moss e Justin Timberlake in Vogue, May 2009


Some boys take a beautiful girl,
And hide her away from the rest of the world.
I wanna be the one to walk in the sun.

(Girls Just Wanna Have Fun, Cyndi Lauper)


Domingo à tarde. Dia assim-assim. Preguiça de sair. Preguiça de deitar mãos ao (muito) que continua por fazer. O sofá chama por mim (e antes que alguém de boa memória se apresse a esfregar-me na cara a contradição, adianto já que não vejo mal nenhum em gastar uma tarde de domingo no sofá; sou é avesso, como escrevi antes, a quem quer fazer disso uma prática continuada, e ainda por cima, pretensamente, romântica. Tout court). Assumo o comando e começo a zapear. Estou com sorte. Em menos de 15 minutos vai começar O Sexo e a Cidade, o filme, num dos canais a cabo.
Sem querer beliscar susceptibilidades alheias, O Sexo e a Cidade, o filme, é coisa de gaja. Okay, a série também era sobre e para gajas; ainda assim, acho, era mais abrangente e com vários alibis semeados para que nós, os gajos que gostam praticamente das mesmas coisas que as gajas [mas não ao ponto de termos por fétiche calçar uns stilettos Manolo ou por fantasia casar num longo branco asssinado por Vivienne Westwood], nos sentíssemos identificados. Já o filme, dou de barato, cumpre perfeitamente a sua missão num domingo coach potato, mas apertou o cerco e, para meu gosto, ficou muito clube das luluzinhas - porque uma coisa é um gajo gostar de ler a Vogue, saber que o Marc Jacobs, além de low fat, está de tal forma enrabichado pelo seu namorado brasileiro que até já trocou alianças e cortou o bolo, ou ainda ter uma opinião formada sobre o regresso das ombreiras; outra bem diferente é, repito, ter por fétiche calçar uns stilettos Manolo ou por fantasia casar num longo branco assinado por Vivienne Westwood. No fundo, a diferença, subtil mas a diferença, entre o "tá-se bem entre elas" para o "deixa-me cá ser uma delas", if you know what I mean...

Não soltar a franga (ou manter os cojones no lugar, se preferirem). É ai que pretendo chegar. Folheio a edição de Abril da Esquire, versão espanhola, e nem preciso ir mais longe. Aqui está uma revista, como a grande maioria das publicações masculinas que não tenham por tema dominante carros e mulheres nuas, que só sobrevive graças aos muitos gajos que gostam praticamente das mesmas coisas que as gajas, mas que não querem sentir-se uma Carrie Bradshaw da vida airada (ou devo antes dizer, da virada?). Não tenhamos é ilusões. Ou vocês acham por acaso que se o target da Esquire, só para continuar no mesmo exemplo, não fosse - ainda que encapotado - gritantemente gay, os moneymakers do grupo editorial deixavam passar uma produção de moda desportiva com o modelo, to die for, enfiado numa jaqueta de vinil roxa combinada com umas calças de treino em malha preta coleante (pág. 180) ou ainda com duas bolas enfiadas no pólo Dsquared (pág. 181)? Óbvioooooooooooooooooo que não. Da mesma forma que não teríam baixado os calções, até ao limite da decência, ao campeão olímpico de natação Michael Phelps... Elementar, meu caro Watson, elementar.

E, subliminarmente ou não, a mensagem passa. Olho para a nova colecção retro, que a Adidas e a Vespa vão lançar em conjunto, e começo a salivar. Quero. Mas contenho-me porque, lá está, lembro-me a tempo da Carrie Bradshaw sempre que se depara com um novo par de Manolos e não quero fazer a mesma figura. Estica o peito, afasta as pernas, ma man. Gajo que é gajo pode até gastar mais dinheiro em roupa do que muita gaja, só não precisa é admiti-lo. Afinal, os armários estão ai para isso mesmo (ahã, é um duplo sentido).

E pronto. Se levaram demasiado a sério tudo o que escrevi até agora, está na hora de soltarem uma grande gargalhada e de irem às compras.

20.4.09

After 30's

I can see the end, of what I've become
A tale of love, come and gone
And now my love, now promises
I wont go falling in love
(Velvet, the Big Pink)


O manifesto "há vida depois dos trinta" já soa a fraco consolo e não falta quem, no afã de provar que ainda está ai para as curvas, até se dê ao trabalho de imprimir no peito a frase lapidar "a vida começa depois dos trinta".

Não vou tão longe, mas digo, sem grandes pruridos, que, quando olho para trás, não sinto grande nostalgia dos meus anos 20. Nesta década, entre ganhos e perdas, ganhei mais do que perdi. Depois, e com tanto trintão (e não só, abençoados Clooney e Pitt, só para citar dois quarentões óbvios) enxuto por ai, nós, os comuns mortais, conquistámos até o direito de estar (e de parecer) bem sem termos de passar pelo despautério de escutar coisas do tipo "julgava que eras bem mais novo"! Mais novo o tanas, afinal a Idade Média já passou à história e se morremos cada vez mais tarde, o mínimo que se pode esperar de alguém nos trinta é que faça por aguentar a peteca. Ou não, que cada um sabe de si.

Curiosamente, o estigma dos trinta continua a fazer estragos no ego e muitos, mesmo os tais que até "passam por menos" (ou talvez exactamente por isso), cedem à tentação de mentir na idade... Aconteceu-me há dias de reencontrar online um velho conhecido, que, sem o menor pejo, na hora de se insinuar resolveu tirar, que eu desse conta, uns quatro anos da sua certidão de nascimento. Para azar do tipo, eu tenho muito boa memória, mas, a fina ironia é que ele nem tinha por que mentir.

Por estas, e por outras, um outro amigo meu brincou comigo e, à laia de provocação, resolveu atirar-me "onde é que fica a tua fonte de juventude?". Ri-me, pois então. Mas fiquei a matutar naquilo. E se, como dizem agora, Darwin sempre teve com a razão do seu lado? Sim, e se andamos para aqui todos ufanos a achar que demos a volta à Natureza quando, na verdade, ela é que continua a dar as cartas?

Passa-me, de repente, pela cabeça a ideia de que o imperativo de nos mantermos jovens aos 30, 40 (e por ai adiante) pode não passar de um estratagema, de um recurso da Natureza, necessário a todos aqueles que, de uma maneira ou de outra, ainda não cumpriram o seu papel na evolução... É uma tese demasiado determinista para quem, como eu, acredita piamente no livre-arbítrio, mas, ainda assim, não totalmente destituída de (alguma) lógica. Olho para mim, por exemplo, e enxergo-me no pleno dos meus 30's com uma série de coisas por resolver - continuo solteiro, tive de me reinventar profissionalmente e voltei a ponderar, seriamente, a hipótese de senão viver, pelo menos de passar largas temporadas num outro país (que é assunto para um outro post) - e interrogo-me se não preciso efectivamente de me manter jovem para levar a cabo tudo aquilo que (ainda) não realizei?

13.4.09

Esperança em tempos de cólera

Is this the place, we used to love?
Is this the place that I've been dreaming of?
(Somewhere Only We Know, Keane)


Ninguém está a salvo dos seus (falsos) pressupostos. Muito menos eu. Tenho vivido todos estes anos plenamente convencido de que nunca me apaixonei para valer e, de tanto o repetir, o que começou, na verdade, por ser uma mera interrogação acabou por tomar ares de certeza (quase) definitiva. E ai transformou-se num daqueles postulados idiotas que não me suscitam orgulho, mas também não me provocam dramas existenciais e/ou recriminações. Foi mais o tipo de coisa que deixamos dobrada no fundo de uma gaveta, na qual até remexemos de quando em vez, mas que não nos damos ao trabalho de despejar para fazer uma selecção do que fica e do que vai fora porque deixou de servir.

Agora, colocando vários episódios recentes em rewind, já não tenho tanta certeza assim... Acho mesmo que há a chance, séria e real, de me ter apaixonado, quiçá até mais do que uma vez, e de não ter dado conta... Parece altamente improvável, esdrúxulo até, eu sei, mas quem se apressar a pensar assim estará, porventura, a cometer o mesmo erro grosseiro que eu.
Entre outros devaneios que não são para aqui chamados, passa-me pela cabeça que eu poderei ser do tipo que não sabe reconhecer em si os sinais da paixão. Dito de outra forma, começo a desconfiar de que, vá-se lá saber porquê, eu ter-me-ei persuadido que paixão era uma determinada coisa, uma coisa tão arrebatadora e tão inequívoca que, ao passar por mim, eu teria, necessariamente, de parar para lhe prestar atenção. E por arrebatador e inequívoco leia-se arrepios na espinha, estômago embrulhado e pernas titubeantes se essas fossem imagens poéticas do meu agrado, mas esse talvez esteja a ser o meu mais terrível e traiçoeiro engano.

Talvez a paixão não me deixe indisposto. Talvez ela me deixe antes disposto para cometer loucuras e actos apressados. É que, para quem se diz intocado pela paixão até hoje, eu tenho cometido vários de cada nos últimos tempos. O que me leva a matutar: se eu sou capaz de loucuras e de gestos grandiosos por pessoas a quem apenas quero bem - ou me suscitam curiosidade, que é uma palavra cautelosa que eu passei a empregar amiúde para salvar a face em caso de derrocada iminente -, o que farei quando realmente achar - tiver a certeza? - que estou arrebatadora e inequivocamente apaixonado? O chão vai tremer? Os sinos vão dobrar? Vai parar de chover? Cristo desce novamente à Terra? Provavelmente, não; provavelmente, não. Percebem onde quero chegar?

Se não entenderem também, não é caso para se incomodarem. Até porque nada do que escrevi até estas linhas é para fazer (muito) sentido. É mais um exercício de lógica e de purga a que me sujeito num dia em que acordei de bem com a vida e comigo. Não que seja raro eu acordar de bem com a vida e comigo, pois passo ao largo das criaturas que foram amaldiçoadas com um despertar rabugento e ácido, mas acontece que sobrevivi a uma manhã particularmente merdosa. Uma manhã em que me vi sozinho num lugar onde não queria estar, sem referências e sem um rosto familiar por perto. Pior, descobri-me longe das pessoas com quem deveria realmente estar naquela manhã de celebração.
Não vou armar-me em forte nem em blasé e dizer que tirei de letra aquela manhã; não tirei. Ela custou a passar e foi dolorosa. Demorei horrores para sair daquele lugar; e demorei ainda mais para me libertar do que me conduziu àquela manhã. De certo modo, uma parte de mim ainda está presa naquela manhã. Mas, como disse, sobrevivi. E sobrevivi inteiro e em paz.

Não se iludam. Não faço minimamente a linha dos que dão a outra face sem ripostar, sem ferir. Mas, não gosto de passar por uma provação sem ficar com o consolo de que, ao menos, aquilo me serviu para aprender a lição. Por isso, em vez de estar furioso e de querer esmurrar alguém que, apesar de todas as vigílias nocturnas, ainda não atingiu o grau de humildade e humanidade necessário para se colocar, por um instante que seja, na pele do outro, eu estou grato.
Porque quando alguém bate a porta, a meio de uma madrugada chuvosa, sem se importar com o que deixa para trás - porque não soube apreciar a nossa companhia, porque não se ralou muito em perceber os nossos gostos e nem sequer hesitou ante a certeza do que tivemos de abdicar para estar ali -, é caso para perder o sono. Mas não é caso para perder a esperança.

Naquela manhã, arrependi-me duramente de não ter dado ouvidos à minha intuição que, por mais de uma vez, me segredou para não ir. Teimei e fui, paguei um preço alto, mas conquistei na adversidade algo inesperado: se, com todas as minhas limitações, desacertos e dúvidas, decidi ir ao encontro - num gesto quem sabe precipitado, admito, mas que me exigiu generosidade e coragem - de alguém que, não obstante a inconstância, a imaturidade e até um certo desapego a roçar a frieza, me tem inspirado, mais do que tesão ou desejo, um carinho genuíno e uma vontade legítima de tentar ir mais além (porque falar em química é vago), então eu ainda tenho esperança. A esperança de que, tarde ou cedo, eu vou deixar de ser uma excepção para passar a ser uma regra. A regra dos que se apaixonam, com ou sem arrepios, com ou sem borboletas, nem que para isso tenham de partir a cara mil vezes.

Cansei-me de ser a excepção que confirma a regra. A manhã passou; ficará o orgulho ferido, quando muito, e uma mágoa que nem sequer é (só) de agora. Mas o que aprendi sobre mim naquelas horas, isso eu vou querer lembrar sempre.

25.2.09

Enquanto isso...

By Oz, algures no Rio


... na ressaca do Carnaval carioca, e prestes a prosseguir a minha viagem até Belo Horizonte, dei por mim a reflectir, mais do que nunca, no excerto que, precisamente, um amigo mineiro me mandou um destes dias do livro Estranhos Estrangeiros, de Caio Fernando Abreu:


AMIGO 1: Entre dois homens, amor é igual a sexo que é igual a cu que é igual a merda. Sabe que não agüento merda? Eu vejo um cara e gosto e tal e me aproximo e rola umas, sempre rola umas, porque eu canto bem, eu sei cantar, veja que vaidade, e daí eu penso Deus, daqui a pouco a gente vai pra cama e chupa daqui, chupa dali, baba, roça, morde, e no fim inevitável tem o cu e a merda no meio. Você acaba sempre dando a bunda ou comendo a bunda do outro. Se você dá, ainda não é nada. Tem a dor, a puta dor. Caralho dói pra caralho. Tem uns jeitos, uns cuspes, uns cremes. Mas é nojento pensar que o pau do outro vai sair dali cheio da sua merda. Mesmo nos casos mais dignos, você consegue imaginar Verlaine comendo Rimbaud? E se você come o outro, tem a merda do cara grudada no teu pau. Mesmo no escuro, você sente. (…) Tem amor que resista? (…) Amor entre homens tem sempre cheiro de merda. (…) Por isso, eu não agüento. (…) Eu não consigo aceitar que amor seja sinônimo de cu, de cheiro de merda. (…) Ter cu é insuportável, é degradante você se resumir a um tubo que engole e desengole coisas. Eu não vou aceitar nunca que o ser humano tenha cu e cague. (…)


AMIGO 2: E se realmente gostarem? Se o toque do outro de repente for bom? Bom, a palavra é essa. Se o outro for bom para você. Se te der vontade de viver. Se o cheiro do suor do outro também for bom. Se todos os cheiros do corpo do outro forem bons. O pé, no fim do dia. A boca, de manhã cedo. Bons, normais, comuns. Coisa de gente. Cheiros íntimos, secretos. Ninguém mais saberia deles se não enfiasse o nariz lá dentro, a língua dentro, bem dentro, no fundo das carnes, no meio dos cheiros. E se tudo isso que você acha nojento for exatamente o que chamam de amor? Quando você chega no mais íntimo. No tão íntimo, mas tão íntimo que de repente a palavra nojo não tem mais sentido. Você também tem cheiros. As pessoas têm cheiros, é natural. Os animais cheiram uns aos outros. No rabo. (…) Se tudo isso, se tocar no outro, se não só tolerar e aceitar a merda do outro, mas não dar importância a ela ou até gostar, porque de repente você pode até gostar, sem que isso seja necessariamente uma perversão, se tudo isso for o que chamam de amor. Amor no sentido de intimidade, de conhecimento muito, muito fundo. Da pobreza e também da nobreza do corpo do outro. Do teu próprio corpo que é igual, talvez tragicamente igual. O amor só acontece quando uma pessoa aceita que também é bicho. Se amor for a coragem de ser bicho. Se amor for a coragem da própria merda”.


Talvez seja isso. Falta-me, até hoje, a coragem para virar bicho.

8.2.09

Ajoelha e reza

Blowjob by Dolce & Gabbana


Are we human or are we dancers?
My sign is vital, my hands are cold
And I'm on my knees looking for the answer
Are we human or are we dancers?

Pay my respects to grace and virtue
Send my condolences to good
Give my regards to soul and romance
They always did the best they could

And so long to devotion
You taught me everything I know
Wave goodbye, wish me well
You've gotta let me go
(Human, The Killers)


Por esta altura da minha vida já deveria saber que o despeito não é um bom conselheiro. Quis dar o troco a alguém que, sem aviso prévio - ou assim o quis entender, que, a bem da verdade, os sinais estiveram quase sempre lá não tivesse eu teimado em lhes fazer vista grossa... -, me deixou apeado, já desfraldado e de pele eriçada, com o bolo nas mãos. Claro que isto de querer entrar a meio numa outra festa, para a qual guardámos o convite "just in case", raramente dá boa coisa. E foi assim que, por mais de uma semana, arquei com as consequências do meu acto impensado e aprendi a duras penas - espero - que, não tão raro como isso, os primeiros instintos são os que contam. Que é como quem diz: se durante mais de um mês não deste o teu número de telefone a um tipo, não lho dês depois só porque um outro filho da mãe te deixou, literalmente, na mão. É asneira da grossa e não vale o trabalho que dá para remediar o mal feito.

Para me redimir do meu ímpeto vingativo, resolvi, depois de ter perdido as estribeiras e de ter dito poucas e boas ao Casanova de trazer por casa, recuar. Fi-lo, disse na altura, porque "o seu erro não justificava o meu", mas essa é a parte bonita e edificante desta estória. A moral, nua e crua, está bem menos para Santa Teresa d'Ávila, pois, por uma vez, achei ser hora de começar a usar quem também me usava - e pelos vistos com maior mestria e sem remorsos. Entrámos assim numa espécie de acordo nunca assumido, mas até certo ponto consentido (quem cala, consente), de mútua e descarada conveniência.

Em teoria, esta coisa de uma mão lavar a outra parece saída dos ideais proclamados desde a Revolução Francesa, mas, na prática, pergunto-me se estou pelos ajustes e se a alcova em questão vale que me arme em Valmont. Mas isto, claro está, são dúvidas e hesitações de quem ainda não se converteu por inteiro ao cinismo e para quem um momento de prazer não justifica todos os meios para lá chegar. Ter-me-ei tornado, para mal dos meus pecados, no último dos moicanos?

15.1.09

"Por ai, eu não vou"



Day one, day one
Start over again
Step one, step one
I'm barely making sense
For now I'm faking it
(Not As We, Alanis Morissette)


A semana fecha com mais um equívoco. Não sei se chego a lamentar. Não sei se há realmente algo a lamentar. Deixei uma porta entreaberta, mais por descargo de consciência do que por convicção de que poderá valer a pena. Não cheguei a tirar os pés do chão e ainda tive de andar a disfarçar, como um adolescente, o chupão no pescoço.

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Há mais ou menos uma semana, estava eu, banho tomado, a secar o cabelo num dos espelhos do balneário quando um dos personal trainers veio dividir a bancada comigo. Nada de mais, não fosse o facto de eu estar vestido, como é normal, e ele totalmente nu. Já o vi várias vezes no ginásio: mais de um metro e oitenta, moreno, boa pinta e corpo musculado. Claro que lhe tirei as medidas pelo espelho, mas tentei ser o mais discreto possível para não lhe dar a satisfação de "alvo atingido". Não faço a menor ideia se o fulano é gay ou não; tão pouco me dei ao trabalho de ficar ali plantado mais tempo do que o estritamente necessário para um tira-teimas. Mas, a ser verdade que ele se estava a fazer a mim, não deixa de ser lisonjeiro, pois o fulano deve ser o sonho de consumo de muito macho por ai, mas não levo jeito para este tipo de engate com linguagem cifrada. E se não é gay, o que eu duvido pela forma como se exibiu, tem imenso talento para a coisa, pois nunca vi um tipo levar tanto creme para um ginásio e colocar tamanho empenho na aplicação de um corrector de olheiras. S-E-I.

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Há dias, nesse mesmo espelho, de novo a secar o cabelo (sim, eu sou dos que não saem para a rua de cabelo molhado). Assim como quem não quer a coisa, o mesmo tipo com quem ainda há pouco tinha cruzado o olhar enquanto estávamos os dois a fazer cardio, chega-se à bancada com o pretexto de se ajeitar antes de sair. Fico com a sensação de que os seus gestos saem meio atabalhoados e que tudo não passa de um pretexto esfarrapado para trocar mais um olhar comigo. Dá-me mesmo a impressão de que, por uma fracção de segundos, fica à espera de alguma reacção minha. Azar. Eu realmente não levo jeito para este tipo de coisas. O fulano acaba por se ir embora e é uma pena. Não me importava nada de ter ficado com o seu número, just in case...

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Escrevi há pouco que deixei uma porta entreaberta, não foi? Ah, já me arrependi. Esqueci-me que por cada porta fechada, Deus abre-nos uma janela. Do nada recebo um sinal de fumo de alguém que julgava já perdido para quem o soubesse apanhar... Leio na mensagem "É só para saber se está tudo bem contigo...". S-E-I. Acho que vou responder: estava uma merda, mas agora pode ficar óptimo.

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Um dia destes, eu ainda me canso de ser um homem decente e enveredo de vez pelo mau caminho. Bem ao género "Oh God make me good, but not yet".