30.12.07

(Re)Começar



Watch the day begin again
Whispering into the night

See the pretty people play

Hurrying under the light

A million cars, a million trains,

Under the jet plane sky

Nothing lost and nothing gained

Life is just a lullaby

(Everything Will Flow, Suede)



A felicidade não tem dia nem hora marcados para acontecer. Ainda assim, eu que até torço o nariz à alegria tantas vezes forçada, ou mesmo imposta, de boa parte das festas de réveillon, não rejeito a perspectiva - chamem-lhe ilusão, não me importo... - de que, a cada novo ano, é-me dada uma nova oportunidade, com infinitas possibilidades de erros e acertos.
Oxalá eu consiga aprender com os primeiros e não desperdiçar os segundos.
E que 2008 não nos passe ao lado!

24.12.07

A esperança



Se eu beber dessa luz que apaga
a noite em mim
e se um dia eu disser
que já não quero estar aqui
na incerteza de saber
o que fazer, o que querer
mesmo sem nunca pensar
que um dia o vá expressar
não há outro que conhece
tudo o que acontece em mim
(Eu Sei, Sara Tavares a partir do Salmo 139)


Há muito que deixei de ser criança, mas espero nunca vir a perder a capacidade de me emocionar com a ideia de comunhão à mesa, nem de me entusiasmar com a ideia de agradar a quem amo nem, sobretudo, de me regozijar com a ideia de que, a cada novo ano, me posso superar e tentar fazer melhor. Porque para mim esse é o verdadeiro espírito desta quadra.
Feliz Natal.

21.12.07

A contra-luz

By Mario Testino


Moving on the floor now babe you're a bird of paradise

Cherry ice cream smile I suppose it's very nice
With a step to your left and a flick to the right
You catch that mirror way out west
You know you're something special
And you look like you're the best
(Rio, Duran Duran)

Há tantos anos que passo ali, mas acho que só agora pude enxergar aquela ilha, plantada entre os postos oito e nove. Sete cores enfunadas ao vento, projectadas num céu cristalino onde cada um imagina o arco-íris que bem quiser. Perscruto rostos e corpos, talhados na exacta proporção da vaidade e de quem se habituou a viver num eterno ensaio fotográfico de Mario Testino. Boys from Ipanema. O Sol cai a pique no Arpoador. À noite todos os gatos são pardos, sobretudo na esquina da Farme de Amoedo com a Prudente de Morais. No 69, ela, de blusa cava, exibe as suas tatuagens, enquanto dança no meio deles e delas. Ninguém quer saber de onde venho, para onde vou e o que faço ali naquela madrugada sem sono. Ninguém a não ser ele, o único que, mesmo a contra-luz, se deixa encadear pelo branco da minha camisa. Blame it on Rio. Sim, a culpa é do Rio e das suas eternas miragens.

13.12.07

Respiração

And I won't go
I won't sleep
I can't breathe
Until you're resting here with me
(Here with Me, Dido)



Estou, como se costuma dizer em bom português, sem tempo sequer para me coçar. É um bom momento da minha vida, com trabalho prazenteiro, mas esta correria, por mais que eu tenha uma costela de andarilho, está-me a deixar esgotado e não me permite algo que eu adoro e preciso: párar, respirar fundo e só depois prosseguir.

2.12.07

A três


But can you save me
Come on and save me
If you could save me
From the ranks of the freaks
Who suspect they could never love anyone

(Save Me,
Aimée Mann)


Chego à hora marcada com um embrulho e uma caixa dos chocolates que ela tanto gosta. Ele já está em mangas de camisa, a cozinhar para nós. Só o vi uma única vez, há uns bons anos, e ainda assim de raspão. Nem me recordo ao certo da sua cara, mas ela insiste sempre em dizer-me ― suponho que também o faça com ele ― que somos parecidos em muitas coisas, por isso, nessa noite, seremos três. Ele estende-me a primeira garrafa de vinho para eu abrir, ela pede-me para ajudá-la a pôr a mesa. Três cadeiras, três pratos, três copos, três velas. Não deixa de ser irónico, penso. A casa ainda está muito vazia, mas, na aparelhagem, toca sem parar Aimée Mann ― é inevitável recordarmos o filme Magnólia. É só mais uma das (muitas) coisas que temos em comum, por isso, e já um pouco bebidos, brindamos à nossa inabilidade para lidar com as coisas do coração. Da mesa passamos para o sofá. Ele prefere ficar sentado no chão, apoiado numa almofada. A conversa solta-se na mesma proporção que vamos esvaziando as garrafas de vinho. Às tantas, ele estende-me um charro (baseado). Recuso, ela aceita dar uma passa. A cena nunca aconteceu ― não entre nós, pelo menos ―, mas soa-me a dejá vu. No final da noite, a minha intuição confirma-se. Nada é dito, nada é sequer sugerido ou insinuado, mas fico com a quase certeza de que ele, tal como eu, está condenado a ser o seu melhor amigo para sempre. Saio de lá a perguntar-me até que ponto, ela tem consciência de que nós os dois, os homens da sua vida, somos realmente parecidos…

28.11.07

Les Fleurs du Mal*


I'm holding on your rope,
Got me ten feet off the ground
And I'm hearing what you say

but I just can't make a sound
You tell me that you need me
Then you go and cut me down, but wait
You tell me that you're sorry
Didn't think I'd turn around, and say...
that it's too late to apologize, it's too late
I said it's too late to apologize, it's too late

(Apologize, Timbaland feat. One Republic)


Como um insecto atordoado pela luz, cambaleio até à janela. Escancaro as cortinas pesadas. Uma fina penugem plúmbea cobre os telhados de Paris. O meu corpo nu estremece quando me roço, inadvertidamente, pelo vidro inerte. Não ouço os teus passos. Quando dou por ti, já um braço me envolve pela cintura como uma trepadeira tenaz. Pousas o queixo no meu ombro. Os pêlos hirsutos da tua barba trespassam-me como agulhas finas. Não me afasto, mas também não me viro. Não de imediato, pelo menos. Deixo-me ficar, contigo à ilharga, a tentar vislumbrar um sentido para aquela manhã de contornos esboroados. Encaro-te por fim, tens os olhos semi-cerrados. Pareces-me frágil. Aceito a tua boca mas, assim que mergulho nela, um rasto amargo deixado pelo último cigarro fere-me a língua. Contenho-me para não denunciar o gosto a fel deixado nas minhas entranhas. Tomado pelo remorso, permito que me conduzas pela mão à cama desfeita. Deito-me de costas, com o olhar enevoado e não solto um ai. Calo-me por me sentir incapaz de te dizer aquilo que há muito esperas escutar. Com as palmas das tuas mãos alisas a minha pele enrugada pelo frio. O sangue que me corre nas veias parece seguir o leito escavado pelas pontas dos teus dedos. Aos poucos, sou invadido por um ardor que me entorpece. La petite morte aproxima-se, antecipo-a mal a tua cabeça se ergue por entre as minhas coxas. Num fugaz instante de lucidez, fixo a jarra ao lado da cama. As dálias franjadas, que ainda ontem exultavam de vida, estão agora mirradas. Dentro da gaveta, ao alcance da minha mão, se a esticar, está um envelope. No seu interior vais achar, quando voltares do banho, um bilhete onde escrevi uma única palavra. E se me procurares neste quarto de hotel, rogo para que não encontres a sombra que deixarei para trás assim que me escapulir sorrateiramente por aquela porta. Comigo vou carregar apenas a culpa de quem não foi tocado pelo amor.

* Título “roubado” a Baudelaire

25.11.07

Fora de órbita

Mars et Venus pris dans le filet de Vulcain (1536)
Maerten Van Heemskerk ©, Vienna, Kunsthistorisches Museum


His wicked
sense of humour
suggests
exciting sex!
(…)
He believes in a beauty
he's venus as a boy

(
Venus as a Boy, Björk
)


Episódio da série norte-americana Rescue Me, segunda temporada:
O pai, um bombeiro velho e rabugento de Nova Iorque, sente-se incapaz de lidar sozinho com a mulher, a quem foi diagnosticado o mal de Alzheimer. Não tem, por isso, outro remédio senão pedir socorro ao filho que enxotou de casa quando este lhe contou que era gay. O filho, que vive com o seu companheiro, vem de imediato em seu auxílio. Passadas as primeiras formalidades, pai e filho ficam, finalmente, sentados frente a frente e não sabem por onde começar. Às tantas, o pai, sem levantar os olhos da mesa, dispara: “Quem é a mulher?” O filho finge não perceber onde o pai quer chegar. O pai repete. O filho não desarma e argumenta: “Mas somos os dois homens!” O pai, sem nunca o encarar, insiste: “Mas quem é a mulher?” E ai, o filho capitula: “Bom, acho que ele é mais mulher do que eu…”. Menos mal, terá pensado o pai.

A ficção, diz-se, imita a realidade. Esta cena lembra-me algo parecido que me contaram um dia destes; alguém, não interessa quem, cansado de viver às escondidas, resolveu escancarar as portas do armário para a sua família. A reacção não foi, ao que parece, a mais entusiástica, tendo sido a avó, para surpresa geral e do próprio, aquela que se mostrou menos chocada. Esta só lhe terá feito dois pedidos: que jamais fosse viver com outro homem e que nunca fosse a “mulher”. Isso sim, seria uma “paneleirice” (viadagem) imperdoável! Tudo o resto não importava.

A velha máxima, seguida aqui à risca, “o que os olhos não vêem, o coração não sente”.

Estive ausente uns dias e quando voltei, na blogosfera, um dos assuntos quentes do momento era o anúncio da cerveja que incita ao orgulho hetero por oposição ao argulho gay.
- Revoltem-se, bradam uns;
- ignorem, contrapõem outros.
Pelo meio, a maioria abandonou as trincheiras para juntar forças e assinar a petição a favor do cozinheiro despedido por ser seropositivo (e sob a alegação de que constituía uma ameaça à saúde pública).

Sou eu que continuo a ter uma visão muito cínica das coisas ou tenho, de facto, alguma razão em achar que o preconceito nunca deixou de existir, apenas está, quando muito ― e por imposição do socialmente correcto ―, mascarado de falsa aceitação?
Admito não ser o melhor exemplo, já que sou “fora do meio” (meio GLS, entenda-se), mas, talvez por isso, a minha sensação é que, nas coisas mais pequenas, as pessoas, mesmo as que vivem cheias de boas intenções e dizem conviver bem com a "diferença", fazem questão de nos recordar que nós, os que não são nem de Vénus, nem de Marte, vimos de outro planeta. Um planeta à parte, do qual se fala muito, mas de que, na realidade, se sabe (e se compreende) muito pouco.
Depois, apetece-me acrescentar, desde quando é que aceitar se tornou sinónimo de apoiar ou entender...

19.11.07

Entre Dorian Gray e Peter Pan


It’s so hard to get old without a cause
I don’t want to perish like a fading horse
Youth is like diamonds in the sun
And diamonds are forever
(Forever Young, Alphaville)


Sábado. Chego atrasado ao almoço com L., marcado para as 13. É o primeiro dia realmente frio deste Outono, o que me deixa disposto. Gosto de dias frios e de roupa quente. A cafetaria do CCB está composta, mas ninguém parece ter muita pressa em despachar-se. Ainda bem. Apesar do sol tímido, não arriscamos a esplanada e instalamo-nos na sala junto a um casal de meia-idade, que prefere a leitura dos respectivos jornais e revistas de fim-de-semana à conversa um com outro. Pelo contrário, eu e L., que não nos vemos há um bom tempo, aproveitamos para, entre garfadas, colocar a “escrita em dia”. Por mais de uma vez, as nossas tiradas são a única coisa que leva o casal da mesa ao lado a despregar os olhos do que está a fazer e a partilhar um franzir de sobrolho. Longe de ficarmos desconcertados, divertimo-nos com a sua desaprovação.

Como L. tem uma festa de aniversário nessa mesma noite e precisa comprar um presente, aceito a sua boleia até ao Chiado. Pelo caminho, conto-lhe o “enxovalho” por que passei recentemente: numa noite de copos com vários colegas de profissão, trai-me e falei do Jamaica. É bom dizê-lo, há mais de dez anos que não ponho ali os pés ― nem ali, nem nos seus vizinhos, também meus velhos conhecidos, Tóquio ou Copenhagen ―, mas ficará sempre associado a um período muito especial da minha vida.
Pelos vistos, e a avaliar pela chacota geral que se instalou assim que proferi o nome “maldito”, o Jamaica que tanto nos atraia, a mim e ao meu grupo de amigos de então, pela boa música que passava e pela sua impagável allure decadente (reunindo no mesmo porão fumarento, universitários, putas tristes e a escória das docas de Lisboa), não passa hoje de uma sombra de si mesmo ― perdeu a aura para passar a ser só, e ponto, decadente. O golpe de misericórdia é-me dado por L., com uns bons anos a menos do que eu, que me confirma o veredicto: o Jamaica está, definitivamente, out na noite lisboeta.

Resignado, mas não derrotado ― afinal, nada apaga as madrugadas em que saí dali com a roupa colada ao corpo depois de tanto dançar numa pista à cunha ―, desço, ainda na companhia de L., a Rua Garrett, por esta altura inundada de gente tomada pelo espírito pré-natalício. De repente, esbarro com um rosto que se abre de espanto na minha direcção. Levo uma fracção de segundos a reconhecer aquela cara a que falta qualquer coisa de familiar, mas aqueles olhos pestanudos gigantes, e muito arregalados, não enganam. Passaram-se não sei quantos anos desde que a vi pela última vez, mas nunca lhe perdi o rasto por completo.
Nem de propósito, E. fazia parte do meu grupo de amigos que frequentava (e gostava) o Jamaica. Está no segundo casamento, no primeiro filho, começou uma nova vida a sul e, reparo finalmente no que faltava, a sua outrora exuberante e farfalhuda cabeleira negra foi totalmente domada para dar lugar a um ruivo pardo. Diz-me que o marido não gosta de cabelos compridos e que ela, entretanto, também se cansou... Não a noto muito convencida.
Na energia, porém, mantém-se inalterada: fala pelos cotovelos, mete-se com L. e não perde tempo a sacar da carteira para nos mostrar fotos da (nova) família. Sinto-a feliz, mas demoro a acostumar-me à miúda namoradeira de antes agora na pele da mulher dedicada que vai para as compras com as amigas para fazer tempo enquanto o marido dela e os das outras se entretêm numa partida de golfe… Às tantas, atira-me: “Estás igualzinho!!!” Sei que é um elogio sincero, mas fico na dúvida quanto ao seu real significado. Quererá dizer que estagnei no tempo, que não amadureci e não formei família como era suposto (logo continuo solteiro, sem filhos, a frequentar porões fumarentos em vez de campos de golfe, a não poupar e em plena crise de identidade sexual)? Ou quererá apenas dizer que, por fora pelo menos, os anos ainda me pesam pouco (talvez porque continuo solteiro, sem filhos, a frequentar porões fumarentos em vez de campos de golfe, a não poupar e em plena crise de identidade sexual)?
Pensando bem, não interessa. Provavelmente, eu represento a vida que ela já teve e ela representa a vida que eu muito dificilmente terei algum dia. Mas, na vida, todos sabemos, ganhamos umas coisas e perdemos outras. Só lamento ter-me esquecido de lhe perguntar se tem saudades do Jamaica…

16.11.07

Roupa a lavar (Série II)

Underwear por Hammerthor para a Comme des Garçons, in Wallpaper Dez. 2007


Surround me with your love
Understand me
I need you now
Surround me with your words
Understand me
I need your love

(Surround me with your love, 3-11 Porter)


Chateiam-me os cretinos que gostam de meter todos os gays no mesmo saco, atribuindo-lhes tiques e manias que beiram quase sempre a caricatura. Mas fico ainda mais lixado da vida quando constato que, às vezes (e só às vezes), até têm uma certa razão. Vai daí, e como tenho sentido de humor, hoje tirei o dia para me dar à paródia (brincadeira, para quem não conhece o termo).

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Ligo o telemóvel (celular) e tenho uma mensagem escrita de um tal Rui P.

- Rui P., que Rui P.? Pergunto-me
- Ah, o Rui!

Fez-se luz. O rapaz, que já mereceu algumas referências no meu blogue anterior, mudou-se com os atoalhados e apetrechos para um novo salão e resolveu comunicar-me.

- Filho da mãe! Logo agora que eu já me tinha habituado ao canapé de veludo lascivamente encarnado e àqueles olhos cravados nas minhas costas enquanto esperava pela vez.

Detalhe: os olhos espetados estão num papel de parede ― com a estampa Tema e Variazioni, de Piero Fornasetti ―, e o Rui não é massagista nem garoto de programa. Trata-se, apenas, de um tipo simpático a quem não adiantava de muito eu explicar o que queria ― invariavelmente, ele sorria, dava-me a entender que tinha percebido exactamente o que eu pretendia e depois fazia o que lhe dava na real gana! ―na hora de ele me cortar o cabelo. E agora, o que faço? Vou ou fico? Já não se fazem mais barbeiros como antigamente, é o que vos digo…

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Fim de tarde dedicado a algumas compras. O perigo dos empórios multimarcas é, se não tivermos o devido foco, acabarmos sempre em secções onde não era suposto… Eu até tenho, por agora pelo menos, o meu stock de roupa interior composto ― como já dei conta aqui, como se isso vos interessasse muito! ―, mas, uma coisa leva a outra, e quando vi já era tarde ― e não, a Comme des Garçons ainda não recorreu a rapazes bem apessoados como o que vem na produção da Wallpaper de Dezembro (caso para dizer que o Natal chegou mais cedo para alguns!), na foto acima, para promover, ao vivo e a cores, a sua nova linha de underwear masculina.
Desperta-me a atenção a marca espanhola UDY. Conhecida por tirar o habitual cinzentismo às cuecas, utilizando cores como o “encarnado diabólico” ― okay, começo a notar aqui um padrão recorrente; primeiro foi o sofá, agora são as cuecas… ― ou colocando caveiras em lugares anatomicamente estratégicos, a UDY lançou o slip Wonderman.
Fiquei intrigado, claro.
Pois é, meus caros, com as cuecas brancas certas podem dar uma melhorada no vosso perfil. Como? Se no caso das mulheres, o sutiã-maravilha sobe e junta as amigas para a apoteose final "unidas venceremos", já o truque da cueca-maravilha está numa pequena bolsa na parte da frente, onde se acomoda o dito cujo. É o suficiente, diz quem experimentou (?), para se olharam ao espelho e perguntarem: de onde saiu aquele tipo confiante que me sorrie do outro lado?!

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A dúvida não me tirava o sono, mas deixava-me inquieto.
Sim ou não?
Sim ou não?
Sim ou não?
Por fim, e depois de umas experiências anteriores ― não muito bem sucedidas, devo admitir ― resolvidas no fio da navalha, resolvi que tinha de pagar para ver.
Paguei (e não me saiu barato!).
Marquei hora e lá fui. Mandam-me entrar para uma sala, com musiquinha de fundo e tudo ― deve ser para relaxar! Dispo a camisa e deito-me de costas na marquesa. Ela entra. Esfrega-me o peito e abdómen com uma loção desinfectante e depois passa pó de talco. Pergunta-me se pode baixar um pouco mais as calças na linha da cintura. Digo que sim, para ficar à vontade. Vamos falando e eu faço de conta que nem estou a prestar atenção à mistela viscosa que ela aquece à parte para não solidificar. E começou então a tortura...
Não sei o que foi pior: se a cera a grudar-se nos meus pelos, se o calafrio de antecipação sempre que ela se preparava para puxar (arrancar?) mais uma banda, se a visão da minha pele intumescida. Mas não soltei um ai.
Sim, que um homem pode até depilar-se, mas não se queixa como um mariquinhas! Agora, perguntem-me lá se vou repetir a graça?

11.11.07

Ressaca


When you go
Would you even turn to say hey
"I don't love you
Like I did
Yesterday"

(I don’t love you like I did yesterday, My Chemical Romance)


Nas duas últimas semanas, o meu trabalho absorveu-me e esgotou-me como há muito não acontecia. Mas fi-lo sem queixas, pois estive a fazer algo que me deu enorme gozo. Por mais de uma vez, já tive o privilégio, e a felicidade, de me realizar profissionalmente, mas sempre tive bem claro que, tal como não me limito a trabalhar para viver, também não vivo para o trabalho por mais que goste do que faço. Mas sei, com o devido mea culpa, que é muito fácil perder o pé e errar a mão. Sobretudo quando retiramos prazer do que fazemos e vamos deixando para trás coisas e pessoas, convencidos de que a hora é aquela e que mais tarde poderemos voltar atrás para apanhar o que sobrou e colar os cacos. Já me aconteceu. Talvez por isso, eu tenha hoje o dobro do zelo para dar a cada coisa o seu devido espaço e não cair na asneira de as misturar. Não dá direito a happy end, acreditem.

Vem isto a propósito de uma conversa que tive há dias com um colega. Encostados a um balcão de bar, depois de várias cervejas ― e há situação mais propícia à (in)confidência? ―, ele, que deixou o seu país e muita coisa para trás por amor a uma mulher, dava-me conta que o seu casamento de apenas dois anos se ressentia até certo ponto das suas constantes ausências devido ao trabalho. Ele tem perfeita consciência disso, mas esta ― a sua realização profissional ― é das poucas coisas, talvez a única, de que não está disposto a abdicar, certo de que sem isso acabará por se tornar um homem infeliz e, necessariamente, alguém incapaz de fazer feliz quem estiver ao seu lado.

Mais do que dar palpites, escutei o seu desabafo, mas aquilo ficou a ressacar na minha cabeça.
- Até onde estamos dispostos a ir, a abdicar, em nome de uma promessa de felicidade?
- Até que ponto poderemos ser felizes, e fazer feliz quem nos rodeia, se anulamos parte do que somos?
Confesso que se nunca fui muito idealista a este respeito, estou ainda mais céptico. Sobretudo agora que me meto também na pele daqueles que, mais do que por amor, abandonam tudo, ou quase tudo, o que lhes é familiar para ir viver de forma mais livre a sua (homo)sexualidade.

- Não será demasiado alto o preço a pagar?
- E o vazio do que se perdeu, chegará algum dia a ser preenchido pelo que se ganhou?

Perguntas sem resposta. Ou melhor: perguntas a que eu não consigo responder de forma clara. Aliás, eu que me gabava até há certo tempo de nem sempre saber o que queria, mas de saber muito bem o que não queria, dei por mim a chegar à dura constatação de que até esse postulado de almanaque está furado. Pelo menos no que à minha pessoa diz respeito. “No fim, quem sofre mais são sempre aqueles que não sabem aquilo que não querem”. Li isto, ou ouvi, um dia destes. Touché.

25.10.07

Geografia afectiva


C'est se taire et fuir, s'offrir à temps
Partir avant de découvrir
D'autres poisons dans d'autres villes
Et en finir de ces voyages immobiles.

(
Les Voyages Immobiles, Etienne Daho)


"Amar pela simples beleza do gesto"

Foi este o verso que me ficou a ecoar na cabeça depois de ter visto As Canções de Amor, um filme de Christophe Honoré ― produzido pelo português Paulo Branco ―, que esteve em competição no último Festival de Cannes e estreou entre nós na semana passada. É uma estória em três actos sobre errâncias, vazio, solidão e amor, em que Paris ― ou o anjo da Praça da Bastilha ― é mais do que um mero pano de fundo e as canções, as tais canções de amor, são mais do que um mero fio condutor.

- Já amaste pela simples beleza do gesto de amar?

Mais do que uma pergunta, Erwann, o liceal romântico do filme que aparece para baralhar as regras do jogo, coloca-a quase como um desafio ao melancólico e perdido Ismaël. Sentado na poltrona, abandonei por segundos o lugar confortável do que se limita a observar de fora e pus-me na pele do visado.
E nem foi preciso reflectir muito para saber o que responderia se fosse comigo. Não. Eu responderia não, porque, por mais que possa achar tentadora a ideia de amar só pelo prazer de amar, não me chega ― e duvido que algum dia venha a bastar. Não sei se isso faz de mim melhor ou pior pessoa. Melhor ou pior amante. Mas preciso amar (alguém ou algo) em concreto e não em abstracto.

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E já que falo de filmes, estreia hoje A Outra Margem. Se calhar, como a grande maioria dos portugueses, tenho uma relação complicada com o cinema nacional, mas este deixou-me curioso depois de ver a sua apresentação e de ter lido na Única (jornal Expresso) uma entrevista lúcida e inteligente de Filipe Duarte, que interpreta Vanessa Blue, um travesti amargurado, vencedor do prémio de Melhor Actor ― ex-aecquo com o jovem, portador do Síndroma de Down, que contracena com ele ― no Festival de Cinema de Montreal.

22.10.07

A chuva


Ô chuva, vem me dizer
Se posso ir lá em cima prá derramar você
Ô chuva, preste atenção
Se o povo lá de cima vive na solidão

(
Segue o Seco, Marisa Monte)


Clarões atravessam a noite, deixando pegadas de luz no breu profundo. O céu não tardará a transbordar. Primeiro num choro envergonhado, quase sussurrado. Logo depois num pranto revolto; gotas rolam pesadas e caem com estrondo.
Ao largo, uma única janela iluminada. Não se adivinha vivalma. Só eles, as duas únicas sentinelas de vigília naquele farol ilhado.
Quer alcançá-lo, mas não sabe como. O seu olhar permanece à deriva, sem se deter no porto que ele lhe estende. Chega-se um pouco mais, disposto a preservar aquele instante. Na penumbra, a sua silhueta é como um desenho esbatido a carvão, mas o calor daquele corpo, e o odor que dele se desprende, tão familiar, dizem-lhe que não sonhou em vão. Ele existe e é tão real como a chuva fria que respinga na madrugada.
Num impulso, próprio de quem não tem a eternidade, agarra-se a ele como um naufrago e deixa-se ficar a flutuar naquele abraço. Amanhã é longe demais. E o tempo pára. Fica suspenso. Só a chuva continua a aguar a calçada. A boca desejada acerca-se finalmente da enseada. Primeiro de mansinho, quase sem lhe roçar a pele. Logo depois com determinação e vigor. O chão foge-lhe debaixo dos pés e ele capitula.
As duas línguas entregam-se a um duelo sem trégua à vista. Ora se emaranham, ora se soltam, para se voltarem a enredar num beijo há muito anunciado. Mas que esperou até ter a noite por única testemunha.
Ele recusa-se a largar o que resgatou da enxurrada. E nem sabe mais se é a chuva que teima em cair ou se são os seus olhos que se turvam para chorar um grande amor.

19.10.07

Eles e ela


Like the little school mate in the school yard
We'll play jacks and uno cards
I'll be your best friend and you'll be mine Valentine
Yes you can hold my hand if you want to
'Cause I want to hold yours too
We'll be playmates and lovers and share our secret worlds
But it's time for me to go home

(Big Girls Don’t Cry, Fergie)


A cena repete-se. Uma vez mais. Eu e a televisão. Desta feita, o meu zapping leva-me a aterrar numa dessas tertúlias obscuras do social cor-de-rosa. Discute-se, como se ainda houvesse algo de novo (ou de credível) a acrescentar, o caso de Diana com o playboy Dodi al Fayed. Alguém opina que o pai, o milionário Mohammed al Fayed, só teima na teoria da conspiração para não ser obrigado a enxergar o óbvio: Dodi era gay e ter-se feito acompanhar de uma bela mulher nos seus últimos dias de vida não prova o contrário. Vão mais longe; uma das especialistas na matéria, presente em estúdio e com ar de quem falava em causa própria, arremata: “o que não falta por ai são gays que desfilam para cima e para baixo com mulheres vistosas!”. Tomem e embrulhem.

Esta ladainha, em rigor, já tem barbas. Lembro-me mesmo der ter lido, certa vez, um artigo que se debruçava precisamente sobre elas, as tais mulheres que, num dado momento das suas vidas, preferem a companhia de gays assumidos ou não ― com casos de todos conhecidos como o de Geri Halliwell, a eterna GingerSpice, e George Michael ou ainda de Madonna e Rupert Everett ―, merecendo por isso a designação jocosa de Fag Hags.

Sosseguem… não me vou pôr a filosofar sobre as razões que poderão levar um gay a querer ser visto em público com uma mulher ― já há teorias de sobra e eu, para dizer a verdade, nem estou interessado na maioria delas! Mas a estória fez-me recordar um episódio vivido durante uma das minhas viagens de trabalho. Ia acompanhado por um colega mais novo, todo metido a garanhão, que me apresentou uma amiga de longa data que ali se encontrava radicada há vários anos. Ela, a amiga, uma mulher interessante, bem disposta, bem relacionada e solteira, disponibilizou-se para fazer de nossa cicerone algumas vezes. Numa dessas noites, a do seu 36º aniversário, convidou-nos inclusive para o seu jantar de comemoração. Na hora de nos sentarmos à mesa, feitas as apresentações, estranhei o facto de, tirando ela, sermos todos homens, mas não dei muita importância ao assunto. É claro que a dada altura, já depois de bem comidos e bebidos, até eu, que nasci com o “gaydar” avariado, não pude deixar de reparar que o grosso dos homens ali presentes era gay… gritantemente gay! Devo dizer que, dadas as circunstâncias, o meu colega, ponto seu, se portou à altura e não teve um daqueles chiliques clássicos que costuma acometer os heteros sempre que se vêem rodeados de gays por todos os flancos. Foi simpático e sociável durante todo o jantar.

Mas o pior estava para vir. Dali seguimos para uma festa que decorria, supostamente, no loft de um artista plástico. Mais uma vez, eu, sempre a leste do paraíso, achei tudo óptimo à entrada: pessoas de várias nacionalidades, música, bastante espaço e todos a servirem-se de bebidas na cozinha, o que me fez recordar as minhas wild parties quando estudava em França… Estava eu imbuído dessa nostalgia estudantil, quando o meu colega me chamou à parte e me pediu para olhar bem à volta… Admito que levei um susto! As poucas mulheres que se encontravam na nossa chegada tinham-se evaporado e o que havia com fartura era marmanjos, por todo o lado, e alguns deles já em fase avançada do amasso. Ele quis ir-se embora imediatamente e eu nem ripostei, pois, acordado para o propósito da festa, senti-me também deslocado. Procurámos a amiga dele, despedimo-nos e zarpámos. Ela ficou, como se nada fosse, rodeada dos seus amigos gays. Foi então, já no táxi, que ele proferiu uma frase que guardei:
- “Ela só vive rodeada de panascas para não ter de encarar que tem trinta e tal anos e está sozinha!”.
A tirada machista, mas que tem, quer se goste ou não, algum fundo de verdade, fez-me rir em silêncio. Não disse, mas pensei:
- “O problema maior dela, porventura, não é ter 30 e tal anos e viver rodeada de panascas! É, talvez, encontrar apenas tipos disponíveis como tu que, tirando a queca - transa - da praxe, não se mostram suficientemente interessantes para ela preferir a vossa companhia à dos ditos panascas!”.

Mas resolvi que ele já tinha tomado a sua dose por essa noite.

17.10.07

A Parede



A movement in the corner of the room!
And there is nothing I can do
When I realise with fright
That the spiderman is having me for dinner tonight!

(Lullaby, The Cure)


Rodopiamos
Embriagados pela luz

Sem despregar o olhar

Eu avanço
Tu recuas

Tropeçamos no ardor
Mas os corpos amparam a queda

Num compasso a dois tempos

Arremesso-te
Tu resistes

Faço-te girar
Tu rebates

A parede nua é a minha teia
Cerco-te por todos os lados

A minha língua é veneno
que te entorpece

Mas o desejo em ti aceso encadeia
Cego, apenas guiado pelo teu cheiro,
Devoro a tua boca

Sopro segredos ao teu ouvido
Os teus lábios devolvem murmúrios

São minhas as mãos que por ti deslizam
É tua a pele que se eriça ao meu toque

E porque a vertigem é passageira
Mas a ilusão pode ser eterna
Enredamo-nos na parede nua
Sem pressa dela sair.

14.10.07

Restart

Por Piero Fornasetti


Birds flying high
You know how I feel
Sun in the sky
You know how I feel
Breeze driftin' on by
You know how I feel
It's a new dawn
It's a new day
It's a new life
For me
And I'm feeling good

(Feeling Good, por Michael Bublé)


A cena repete-se. Eu, a televisão e umas quantas personagens que, de quando em vez, deixo entrar em casa, com direito, conforme o caso, a partilharem o sofá ou a cama comigo. Tenho particular predilecção pelas que, entre gargalhadas, me conseguem fazer pensar na vida. Como aconteceu uma noite destas:
Dois homens num restaurante discutem a relação.
(até aqui nada de novo; raros são os seriados que agora dispensam os gays nos seus enredos)

Um deles brinca e diz que nem teve de se preocupar em sair do armário, pois sempre se soube gay. E os outros à sua volta também.
(por essa altura eu já tinha decidido que era o outro, o que, pelo canto do olho, não parava de ver se as pessoas da mesa ao lado estavam a reparar neles ou a tomar atenção na conversa…)

Não satisfeito, resolve cutucar o seu companheiro e dispara à queima-roupa: “aposto que tu foste daqueles que demoram imenso tempo a assumir-se!”
(decididamente eu era o outro, o encurralado entre a pergunta incómoda e o desconforto de poder estar a ser alvo da curiosidade alheia…)

Mas eis que se sai com uma resposta de truz: “realmente demorei um bocado a tomar consciência de que era gay. Afinal, não nasci a gostar de musicais nem a perceber logo de roupa”.
(rejubilei triunfante… quando parecia que ia jogar a toalha no chão e balbuciar uma desculpa mal amanhada, ele mostrou-se à altura! Sempre dá muito jeito ter uma equipa de roteiristas a trabalhar as nossas falas!)

(Pausa para pensar no assunto)

Os musicais, dispenso-os. Faço parte dos zilhões que viram Cats ― mas em minha defesa posso sempre alegar que o meu (bom) gosto estava então ainda em fase imberbe... ―, vi O Fantasma da Ópera porque me obrigaram (!), mas quando tive a oportunidade de ir pela primeira vez à Broadway, vinguei-me. A maioria do grupo queria ir assistir a um dos musicais em cartaz, mas eu fui antes aplaudir a Natalie Portman, na altura uma miúda com ares de Lolita, que estava em cena numa versão teatral do Diário de Anne Frank. Escusado será dizer que me gabo disso até hoje…

Quanto à roupa… tenho dias. O certo é que ainda há bem pouco tempo, decidido a renovar o meu estoque de roupa interior, fui ao Corte Inglès. Gosto de ir ali por ser um espaço multimarca, mas, regra geral, o mais certo é ir direito à secção da Calvin Klein, onde escolho o modelo de sempre, nas cores de sempre: preto, branco e cinzento. Desta vez, porém, e porque a ocasião o pedia, resolvi “variar”. Não foi fácil, mas lá arrisquei nuns modelos da nova colecção ― para os mais distraídos: sim, também há novas colecções e tendências nas cuecas de homem! ―, com especial destaque para uns trunk encarnados ― os que estão a torcer o nariz, pensem duas vezes, pois não só o modelo fez sucesso entre quatro paredes, como se portou à altura num momento inspirado em que resolvi partilhar as tarefas domésticas e varrer logo pela manhã o chão da cozinha nestes preparos!