24.3.08

A pele de cordeiro


Here comes Johnny Yen again
With the liquor and drugs
And a flesh machine
He's gonna do another strip tease

(
Lust for Life
, Iggy Pop)


Não sou propriamente do contra, mas desde criança que o meu pai me avaliou e apontou um desvio de carácter perturbante: eu faço a linha anti-herói. Quer isto dizer que eu muito raramente me comovo, na ficção como na realidade, com o herói que, de tão bonzinho e bem-intencionado, me provoca bocejos. Chamem-me descrente, quiçá insensível, mas gente muito boazinha nunca me convenceu; antes me deixa com os nervos em franja e de pé atrás.

É mais forte do que eu. Gosto de pequenos defeitos. Gosto de imperfeições. E gosto de quem assume as suas fraquezas sem lamechices. Talvez por isso o meu coração sempre bata mais forte por todo o sem-vergonha que pode até se esquecer de ajudar a velhinha a atravessar a rua, que não poupa nada nem ninguém às suas tiradas secas e cínicas ou que se está a lixar para ganhar o céu em vida, mas ainda assim, quando ninguém está a ver, é capaz de tirar a camisa para a dar alguém em apuros.

Não confundam as coisas. A minha predilecção por bad boys nada tem a ver com ser amoral ou totalmente desprovido de ética e decência. Tal como não tem a ver com o tipo canalha-pé-de-chinelo. Eu sou mais o irresistível patife, bon vivant de sorriso matreiro, que gosta do que vê quando se olha ao espelho e não sente remorsos em desfrutar do bom e do melhor. Sempre em grande estilo. De preferência metido num bom fato (terno) italiano.

Agora vem a parte pior. De pouco me adianta esta identificação. De nada me serve colocar ali, no canto superior esquerdo do blogue, a imagem de um anjo negro. Como arremesso de bad boy eu deixo muito a desejar e ninguém me leva sério por mais que eu bata o tacão da minha bota-mata-baratas e afine a mira do meu olhar-calibre-33. Quase me resignei à minha triste sina de bom rapaz, no melhor estilo o neto-que-toda-a-avó-gostaria-de-ter ou o genro-que-toda-a-sogra-pediu-a-Deus. Fazer o quê? A sentença saiu e vaticinou que eu faço o género para-casar; logo eu que queria antes ser o motel e não a casa com cerca branca e jardim.

É o descrédito total – podem rir, eu mesmo estou a gargalhar!

Aliás, por este caminho, e se ainda se espalha que eu gosto de flores, de animais e de criancinhas, não tardará muito a ter alguém a pedir-me para ser o pai do seu bebé – o que me vale é que não tenho amigas assim tão modernas e/ou desesperadas. Nem distraídas, pois, convenhamos, a avaliar o que gasto em roupas e outras futilidades que tais, não sou exactamente um poupa-níqueis-para-mais-tarde-garantir-o-futuro-do-fedelho de fiar (ops, shame on me!).

Mas já que da fama de bom rapaz não me livro, resta-me esperar que, tal como os homens preferem as louras mas escolhem as morenas para casar, os outros homens se queiram apenas divertir com os bad boys. É que os ditos bons rapazes c0mo eu podem até nunca conseguir, por muito que ensaiem poses e trejeitos, cultivar o mistério, o gingado ou o olhar-atravessa-paredes do bad boy, mas, em compensação, ao mostrarem maior disponibilidade para enxergar para lá do próprio umbigo, e se forem suficientemente espertos, depressa ficam com um trunfo escondido na manga: saciada a primeira vontade, o que sustém a tesão – e tudo o que se lhe segue – não é a imprevisibilidade, mas precisamente saber de antemão com o que se conta na hora H.

20.3.08

A miragem

Campanha de swimwear da marca australiana AussieBum


So with tomorrow I will borrow
Another moment of joy and sorrow
And another dream and
Another with tomorrow

(With Tomorrow, This Mortal Coil)


Da mesma forma que acordamos a meio da noite, varados de fome, dispostos a atacar o frigorífico (geladeira), senti um desejo repentino de voltar a ouvir This Mortal Coil. E tinha de ser já. Nem pensar em perder tempo a procurar antigas gravações desta banda no meio da minha tralha pré-era-digital. A dispensa do Utube está ai mesmo para isso e, como todo o bom
delivery, funciona 24 horas sobre 24 horas. Arrombei as portas e na jukebox pus a tocar uma velha preciosidade (está ai acima, para quem estiver interessado). Música boa para dor de corno e de cotovelo, dirão alguns. Nem por isso, riposto eu, mas se tivesse ali à mão uma garrafa de vodka bem gelado, confesso, ter-me-ia passado pela cabeça baixar as luzes, tirar os sapatos, jogar umas almofadas no chão e deitar o gargalho à boca. Só pelo prazer de beber sozinho. Em vez disso, acessei a minha caixa de correio electrónico. Ideia peregrina aquela hora tardia, mas, fazer o quê, o tédio tomava conta de mim. Vários convites. A maior parte deles para jogar no lixo sem sequer me dar ao trabalho de os abrir. Mas aquele prometia. O endereço era-me familiar. Abro, leio e nem quero acreditar. Leio uma segunda vez – e olhem que nem cheguei a beber. Até finais de Maio só tenho de escolher as datas em que quero desfrutar de três noites, com tudo praticamente pago, num dos melhores e mais novos hotéis de Mykonos!!! A vida prega-nos cada peça. Há uns largos meses, ainda no Metamorfose de Oz, eu dediquei um post a esta ilha-grega-doida-de-pedra [(re)ler aqui], no qual manifestava, precisamente, o meu desejo de ali voltar... Éden pluri-multi-pansexual, Mykonos, já dizia eu então, esteve na moda, deixou de estar e voltou a estar. E reergueu-se das cinzas com tudo – inclusive lugares lindos e cheios de mordomias como o hotel em causa. Põe-se agora a questão: o convite dá direito a acompanhante. Faço um leilão entre possíveis candidatos, com direito a provas físicas e interrogatórios rigorosíssimos, ou pego na mala, nos meus óculos escuros, nos meus AussieBums e vou sozinho-e-seja-o-que-Deus-quiser?


Mais AussieBum, desta vez com os meus votos de uma Páscoa Feliz (para quem gosta de ovos e coelhos, é claro!)


18.3.08

Some like it hot, outros não








It takes courage to enjoy it
the hardcore and the gentle
big time sensuality

(
Big Time Sensuality, Björk)


Sempre que virem um homem podre de bom a tirar a camisa num comercial e a fazer olhinhos de cama à câmara, podem estar certos que, 8 em cada 10 casos (e já estou a dar de barato…), há ali um queer eye matreiro e perverso a orquestrar tudo nos bastidores, oh se há. A receita é mais velha do que a Sé de Braga – e a Sé de Braga é antiga como o caraças -, mas ainda tem muito para bater, pois quem gosta de rapazes – sim, parece que as mulheres também não desgostam… - sempre se pelou e vai continuar a se pelar por uns belos peitorais ao léu – há maus hábitos que não mudam com o tempo, tendo em conta que muitos imperadores romanos, antes de Cristo descer à Terra, já suavam frio com os abdominais dos centuriões.

Antes de escarnecerem da minha bem sustentada lógica, experimentem só olhar com atenção para o mais recente anúncio do perfume The One for Men (ver aqui), estrelado pelo calmeirão Matthew McConaughey – nem sou grande fã de um tipo que faz gala em não usar desodorizante há mais de 20 anos (!), mas só o facto de o gajo ter trinta e quase todos e ainda ficar bem na fita, já é motivo para todos os trintões, eu incluído, lhe ficarmos gratos -, e digam lá se não tenho razão.

De uma assentada só, o duo Dolce & Gabbana piscou o olho às mulheres e aos gays, ou não fossem estes os alvos preferenciais quando se trata de vender um perfume masculino. E de que gostam as mulheres e os gays? De homens que lhes encham as medidas, pois então. Foi essa mesma lógica que levou à escolha certeira do modelo britânico David Gandy, mas capaz de meter no chinelo muito latin lover legítimo, para dar corpo – literalmente falando – à fragrância masculina mais estival da marca, o Light Blue.

Curiosamente, se as campanhas publicitárias de Dolce & Gabbana não me passam ao lado, o mesmo já não posso dizer dos seus perfumes. Sei lá, deve ser uma coisa de pele. Agora não dispenso um bom perfume – e escusam de me vir com aquela lenga-lenga da treta de que o cheiro natural de cada um é mais do que suficiente…

Gosto de perfumes e não se fala mais nisto. E não é de hoje. Comecei a usá-los ainda adolescente imberbe e sem ter muita noção do seu poder. Sim, porque umas gotas do perfume certo no momento certo – tal como uma peça de roupa, nem todos os perfumes nos assentam bem, há que testar primeiro a sua química com a nossa pele, da mesma forma que o mesmo perfume não vai bem em todas as ocasiões – não garantem o milagre, mas podem apressar a revelação.

Há quem seja fiel ao mesmo perfume a vida toda. Não eu. Até há aqueles a que, mais tarde ou mais cedo, eu volto sempre – como é o caso do Egöiste, pela Chanel, um perfume poderoso que vai muito bem com uma camisa preta -, mas preciso sentir que sou livre para experimentar coisas novas – ainda me lembro da primeira vez que usei um perfume da Carolina Herrera; não descansei enquanto não descobri o seu nome depois de me ter inebriado com ele em pescoço alheio (o pescoço per si, e o dono do pescoço, era-me indiferente, eu queria mesmo era a senha para a gruta de Ali Babá). Agora estou a usar Prada de dia e Narciso Rodriguez à noite. Mas se tivesse de escolher um perfume só pela embalagem e não pelo conteúdo, não pensaria duas vezes em deitar a mão ao parrudo do Fuel For Life by Diesel – tanto que o rapaz é repetente aqui no blogue, honra rara. Coisa fina é também o Wood dos manos canadianos da Dsquared, com direito a um homem-propaganda-com-olhos-de-cachorro-abandonado a quem dá vontade de dar casa, cama e roupa lavada.

Agrada-me a ideia de tomar banho e, ainda de pele húmida, borrifar a nuca ao de leve e deixar escorrer um fio pela linha do umbigo antes de me vestir. Gosto que o meu perfume me anuncie sorrateiramente – nada pior do que alguém que exagera na dose – ainda antes de eu chegar perto. Como gosto também que ele perdure como uma memória olfactiva, quando já me fui, entranhado na fronha de uma almofada ou emaranhado nas mangas de uma camisa por onde me demorei.

14.3.08

Entre gajos



Went to school and I was very nervous
No one knew me
No one knew me

Hello teacher tell me what’s my lesson

Look right through me

Look right through me

And I find it kind of funny

I find it kind of sad
(Mad World, Gary Jules)




Viagens de trabalho são fodidas – e olhem que as minhas vêm acompanhadas de uma série de brindes, entre os quais dormir em hotéis cinco estrelas, comer nos melhores restaurantes e ter acesso a lugares e a pessoas que, de outra forma, me seria muito difícil, para não dizer impossível.
Mas, ainda assim, são fodidas as viagens de trabalho. Nem tanto porque deixo de ter domingos ou dias santos; nem tão pouco porque sou obrigado a pular mais cedo da cama do que o habitual - God knows como eu gosto de acordar cedo! -; nem sequer porque me vejo forçado a ouvir coisas que não me interessam e/ou a ver coisas que não me dizem nada. Tudo isso faz parte do pacote.

O que me deixa meio assim, cada vez mais, é o facto de elas me colocarem perante um facto consumado: o de que, por uma série de dias ou até semanas – e a minha paciência tende a diminuir na mesma proporção que o número de dias aumenta... –, vou ser obrigado a privar intimamente com os meus colegas. Não me entendam mal. Ao longo da vida já tive vários colegas que se tornaram óptimos amigos, mas, regra geral, não faço disso uma prática corrente e gosto de separar as águas.

O que fazer então quando as ditas das viagens nos colocam não só mais na mesma sala por várias horas, mas também, com um pouco de azar, no mesmo quarto, no mesmo carro, na mesma mesa e, pior, no mesmo bar ou boate a emborcar copos para relaxar por dias a fio? Sei que para muitos a ideia de ir para a farra com os colegas até pode soar a um bom programa – e nem digo que não seja, dependendo do que se bebe, onde se bebe e com quem se bebe -, mas o álcool traz consigo um pequeno detalhe: solta as línguas e estimula a troca de confidências. Revelações sem as quais nós sempre vivemos bem – aliás, sou mesmo da opinião que há coisas pessoais sobre os nossos colegas que nunca, em hipótese alguma, deveríamos saber! E é então que, fora de casa, largados no mundo, sem contas a prestar, começam as coisas de gajos. E os gajos querem o quê? Gajas, pois claro. E quantos mais forem os gajos no grupo, pior será, já que, é sabido, gajo que é gajo não gosta de dar parte de fraco à frente de outros machos.

Até hoje – orgulho-me disso – tenho conseguido gerir bem esses pepinos e muito raramente me lembro de ter cedido à pressão de sentir que tinha de provar fosse o que fosse aos outros machos da espécie. Não o fiz quando vivia como hetero; não o faço agora, por muito que não me apeteça especulações acerca de quem levo ou deixo de levar para a cama.
Estou consciente que, ao longo destes últimos anos, já terei levantado suspeitas em alguns dos meus colegas, mas sou discreto e ambíguo o suficiente para que ninguém possa ter certezas. Logo, na dúvida, sou mais um. Mais um que tem de ouvir – e ainda achar graça! – a piadinha rasteira lançada à empregada de mesa, de fingir solidariedade com uma classe que se diz ameaçada por um cada vez maior número de maricas assumidos - e esboçar um riso amarelo quando alguém se apressa logo a acrescentar o remoque da praxe: “por mim tudo bem, é da maneira que sobram mais mulheres para nós”! -, de gramar a tipa que, entretanto, se juntou a nós e graceja com o facto de ser o “homem” da sua loja – como se ser gay fosse necessariamente sinónimo de incapacidade para cumprir “tarefas masculinas” como trocar um fusível ou contratar um empreiteiro -, ou ainda de me conter para não lançar uma bojarda quando uma outra gaja se queixa da “tremenda” injustiça que é o facto de homens muito bonitos serem paneleiros…

Posto isto, devo dizer que não vivo, regra geral, num meio hostil aos gays. É mais aquela coisa – que pode também ser muito irritante e tão ou mais ofensiva, por ser encapotada – do famigerado politicamente correcto. O típico “ até tenho amigos pretos” de outrora deu lugar, parece-me, ao pouco convicto “não tenho nada contra os gays” de agora. Isso, desde que, claro está, os maricas não dêem muito nas vistas e se comportem como gente “normal”.

E tem sido assim que eu, que nunca sonhei em ter a minha vida limitada a uma Liberty Avenue (referência a Queer as Folk) – porque não gosto de guetos – e não frequento as Babylons da vida airada (nova referência a Queer as Folk) – porque prefiro a pluralidade de opções e de possibilidades (e ainda tenho um medo danado de boate gay, essa é a grande verdade que não cala! Hahahahahah) -, tenho compreendido melhor os gays que optam por socializar apenas em ambientes gay friendly. Não me estou a ver a fazê-lo – porque, repito, gosto muito de me dar com todo o tipo de pessoas -, mas percebo. É realmente uma violência grande essa a de termos de fingir ser uma coisa que não somos. Fingir gostar de algo que até gostamos, mas não da mesma forma nem para o mesmo fim.

Será talvez o preço justo a pagar por viver com um pé lá e outro cá. Mas já me custou menos. Bem menos.


11.3.08

Telegrama

Avenida Afonso Pena, Beagá, Minas Gerais


Por isso hoje eu acordei
Com uma vontade danada
De mandar flores ao delegado
De bater na porta do vizinho
E desejar bom dia
De beijar o português
Da padaria...

(
Telegrama, Zeca Baleiro)


Troco as voltas ao relógio e aterro directo no boteco da esquina. Beagá mata a sede, lava a alma e afina a mira no Maria de Lourdes. Duas garotas sentam-se à minha mesa. Uma delas, cruza o tchê gaúcho com o uai mineiro, matiz de escocês com chinesa. Linda de morrer (vontade de levar para casa). Saio arrastado para um qualquer forró da Zona Sul, onde me encharco numa bebida açucarada de má memória, mas é no MP5, para os lados do Raja, que me acabo a dançar, movido a vodka e energético. Ele, ligeiramente mais alto do que eu, de bermudas e camisa amarrada na cintura, é o dono da pista (vontade de pegar ali mesmo). O financier, bolinho de amêndoa, do Graciliano derrete-se na boca, misturado com o café forte e ardido. O pastel de banana na Marília de Dirceu, com os seus ares de Jardins paulistanos, polvilha-me o céu da boca. Árvores, muitas árvores no asfalto que abre frestas como uma erva daninha. No Favorita, entre azulejos hidráulicos e filete de raia no ponto, ele, o chef de olhos azuis e cabelo revolto, lança o isco mas eu deixo o anzol meio solto (um dia, quem sabe). Na outra esquina, no Dádiva, vazo quase uma garrafa de vinho sozinho apesar de estar acompanhado (mas não por quem eu gostaria). O encontro de diferentes estilos e linguagens na Praça da Liberdade. O trânsito que avança aos solavancos. Os arranha-céus da Afonso Pena ao cair da noite. As casas dos ricos encurralados de Mangabeiras. O garoto deliciosamente imberbe que me guia pelos corredores do Palácio das Artes (vontade de levar para casa). Descobrir Gringo Cardia, o homem dos sete ofícios que colocou Mariza Orth em pêlo a cavalo num ensaio da Playboy. O tipo da Ellus que só me falta dar o número de telefone. A garota da Blue Man que me dá o telefone sem eu lhe pedir. O taxista que me previne “se não come, é viado”. A vertigem das cores e dos cheiros no Mercado Central. O doce de leite de Viçosa que adio para mais tarde. A Savassi, onde há sobremesas de Portugal e livrarias, como a da Travessa, onde não apetece ter pressa, e a rua Fernandes Tourinho, onde abraço Ronaldo Fraga e me lambuzo com um menu natureba no Mandala. Teimar em ir ao Graças a Deus quando deveria antes ir ao Josefine Club. As cervejas esvaziadas em Santa Tereza e na Serra. A ressaca de uma noite mal dormida. O almoço farto de sábado no Xapuri, depois de visitar o cachorro que Portinari pintou na igreja que Niemeyer criou na Pampulha como ensaio para Brasília.
As esquinas de Beagá, verdadeiros triângulos onde só se perde quem quer. Ou quem tem coragem.