14.4.08

A carne

Sequência do filme Women in Love, com Alan Bates e Oliver Reed


Everybody's looking for something
Some of them want to use you
Some of them want to get used by you
Some of them want to abuse you
Some of them want to be abused

(Sweet Dreams, Eurythmics em versão Remix)


A última vez que olhei para o relógio passava das três. Procuro-o em vão, mais abaixo, na pista. Quem desejei e não me quis está agora diluído na massa de corpos em transe, onde só distingo braços num hula-hula frenético - como se a deusa Kali, mas com muitos mais braços, dançasse a alta voltagem. Os meus poros, incapazes de suster por mais tempo a torrente, abriram as comportas. A camisa cola-se-me como uma segunda pele. O mesmo acontece com os jeans. Com as pontas dos dedos amparo o suor que escorre em catadupas pela testa e empapa os cabelos. Antes mesmo de levar o gin tónico à boca, encosto o copo fosforescente ao rosto, na esperança que o gelo, além de dormência, me traga alívio. Recosto-me no balcão. Afino a mira e varro toda a sala até achar o alvo. Está encostado a uma coluna, também de copo na mão, e não se esquiva quando se percebe debaixo de fogo. A mesma altura, o mesmo tipo físico. Até as roupas que usamos são idênticas. A semelhança não me constrange. Antes me atiça a ir até ao fim. De um só gole termino o que comecei. Em momento algum o perco de vista. Ele não se move. Serei eu a avançar. Caminho sem pressa, indiferente a quem se atravessa pelo meio. Não paro. Passo rente, como se o meu foco fosse outro, contorno a coluna e, sorrateiro, ataco-o pelas costas. Sussurro-lhe apenas três palavras ao ouvido e largo-o onde o encontrei. Não espreito uma única vez para trás, mas confio no meu ardil. Conheço os cantos à casa e sei que, àquela hora, a casa de banho reservada aos funcionários, no andar acima, estará a salvo da confusão. Abro alas por entre os que se prostraram nos degraus à conversa. Quando atinjo o topo das escadas, ouço passos no meu encalço. Entro na primeira porta à esquerda do corredor vazio. Atraso-me de propósito para garantir que ele me vê entrar. Às apalpadelas encontro o interruptor da luz. Fecho-me lá dentro. Não é muito grande, sobretudo porque a utilizam também como depósito, mas serve os meus intentos. Não tenciono demorar-me, de toda a forma. Sem perder mais tempo, abro a torneira do lavatório e recebo a água fria, primeiro nas mãos em concha, logo depois directamente no pescoço e no rosto em brasa. Quando me olho no espelho baço, já ele está pespegado na soleira da porta. Não me viro imediatamente e ele fica a observar-me enquanto enxaguo as mãos. Passo o trinco na porta sem que ele se desvie um milímetro. Quase de imediato, lança as mãos ao meu pescoço para me beijar. Travo a investida. Tenho outros planos. Sôfrego, ele volta à carga, e mais uma vez eu recuo. Isso deixa-o momentaneamente atordoado, pelo que aproveito o momento de fraqueza para o encurralar num canto. Mal se apercebe da volta-face inesperada, começa a debater-se na armadilha, mas estou em vantagem e abocanho a sua jugular de supetão. Uso a boca como uma ventosa, sem me preocupar em deixar marcas da minha passagem. A rendição é-me anunciada sem palavras, quando a resistência amaina e dá lugar a espasmos. Dos seus lábios entreabertos soltam-se os primeiros gemidos, abafados, entrecortados por uma respiração arfante. Com uma das mãos asseguro-me que não se solta, mas a outra está livre para, debaixo da camisa desfraldada, avançar às cegas. Ensaio piruetas incompletas ao redor do seu umbigo, afago e belisco, ao de leve, a pele até sentir os seus mamilos intumescidos. Detenho-me por segundos, até que ele sustém a respiração. Ficamos suspensos. Ao sinal, irrompo com a força de um madrigal, ceifo a seara alheia e tomo entre os meus dedos o seu sexo latejante. E só então permito que me beije. Cerro os olhos. Quando os abro, continuo ali; não mais com ele, mas com quem desejei e não me quis.

16 comentários:

Unknown disse...

Simplesmente fantástico. O texto deixou-me hipnotizado do princípio ao fim e se o início prometia o final foi mais do que estava à espera. Brilhante!

Abraço ;)

João Roque disse...

LINDO!
Carnal e lindo.
A foto, com uma das cenas mais belas que já vi no cinema, completa perfeitamente o texto.
Bravo.
Abraço.

Anónimo disse...

Jizúis, isso que é um bom começo de segunda-feira!! :-) Fiquei molhadinho, hehehe...

Beijo!!

papagueno disse...

Acho que já foi tudo aqui dito.
A letra do "sweet dreams" aplica-se perfeitamente a este post.
Um abraço.

Latinha disse...

"...E essa tal felicidade anda por aí, disfarçada, como uma criança traquina, brincando de esconde - esconde..." (Desconhecido)

E a palavra do dia é sincronicidade, eu tinha escrito um texto "carnivoro", mas acabei não postando, ou postergando por ora.

Perfeito! Grande semana!!!

Râzi disse...

Olá, meu querido.

Fiquei intrigado com o conto! Ainda não tenho certeza se era vc, Nosferato ou apenas um conto! :D

Vou procurar saber depois!

Beijo!

Kokas disse...

Alguém dizia no outro dia, penso que era o WILL, que desejar alguém pelo que projectamos... é uma enorme violência e uma grandiosa injustiça. Pois bem. Hoje foi isso que me disseste, com imagens, através deste texto genial...

Aquele abraço

Tarco Rosa disse...

Oz, que surpresa boa ler o seu conto! Magistral a sua maneira de narrar. Quanto a mim, não há greve. Foi apenas uma pausa tática para ter subsídios para futuras ações...
Um abraço

Socrates daSilva disse...

Sem palavras...
abraço

Anónimo disse...

Nenhum orgasmos se deve abandonar...
Mesmo os fingidos!

Anónimo disse...

Sem palavras! Safado!
Beijos

SP disse...

Gosto de te visitar!
Um abraço...

Will disse...

O nosso Oz continua a surpreender-nos com textos cada vez melhores!

Gostei muito, sim senhor: carnal, envolvente e físico (sim, que às vezes também é bom)...

;)

Anónimo disse...

Ui! que intenso ;@

rsrsr

muito bom!

Paulo Mamedes disse...

Oz, você me fez imaginar tudow... hehehe
Brilhante o seu texto, mas não esperava menos de vc... rs, exigente eu né...!

Super beijo, agora me deixou ansioso pela parte II. haiahiahihai

Luís Galego disse...

aos 33 do jantar…

De palavra em palavra
a noite sobe
aos ramos mais altos

e canta
o êxtase do dia.
Eugénio de Andrade

É verdade que é importante conhecer a cara de quem escreve. É curioso saber a quem confiamos alguns dos nossos segredos. É bom partilhar ao vivo o que vamos repartindo por via das palavras escritas. Saboreei o jantar de bloguers, o meu primeiro, e gostei de conhecer todos aqueles com quem tive oportunidade de trocar algumas palavras. Só conhecia uma das pessoas, por sinal um ser humano excepcional, uma espécie de patrono/bastonário destas lides blogsferianas: o famoso Pinguim, o João do Dejan. Percebi por que o blog do Paulo e do Zé se chama Felizes Juntos. Não há dúvida. Aqueles dois críticos da política educativa que se vai vivendo transpiram algo que me foi muito agradável registar. Oferecer a todos Clarisse Lispector foi, igualmente, um amável presente e um sinal de generosidade literária por parte daqueles dois homens das línguas e literaturas modernas.
Grato!!!