31.8.08

Au fil des jours

River Phoenix e Keanu Reeves em My Own Private Idaho


I don't care if Monday's black
Tuesday, Wednesday - heart attack
Thursday, never looking back
It's Friday, I'm in love

Monday, you can hold your head
Tuesday, Wednesday stay in bed
Or Thursday - watch the walls instead
It's Friday, I'm in love

Saturday, wait
And Sunday always comes too late
But Friday, never hesitate...
(Friday I'm in Love, The Cure)




Pela boca morre o peixe. Nunca dizer nunca, não vá o Diabo tecê-las, tornou-se uma espécie de postulado dos nossos dias, uma superstição - lagarto, lagarto, que o Diabo seja cego, surdo e mudo - a que nem os descrentes escapam incólumes. Ninguém quer morrer pela boca. Ninguém quer ser apanhado em flagrante negação. Não sendo eu a excepção que desdiz a regra, sexta-feira passada caí em contradição. Fi-lo por impulso, mas suficientemente consciente para não me agarrar à primeira desculpa esfarrapada. Fi-lo porque cheguei ao chamado ponto do não retorno, e entre dar o dito pelo não dito ou deixar alguém de quem gosto na mão, eu posso até hesitar, mas não vacilo. Fi-lo não porque a isso me levaram, mas porque a isso eu deixei que me levassem. Porque na vida, cedo ou tarde, de um jeito ou de outro, todos nós somos postos à prova. E é ai que deixa de ser apenas uma questão de saber viver com as nossas escolhas para passar a ser também uma questão de aprender a viver com as implicações dos nossos actos. Podemos teimar em viver pelas regras que a nós mesmos impusemos. Ou não. Na sexta-feira passada caí em contradição. Mas sou Homem o bastante para não fazer disso uma excepção. Desdizer-me-ei tantas quantas as vezes em que me permitir a liberdade de voltar atrás. Entre uma página imaculada, sem borrões, e uma página reescrita, com emendas e rasuras, agarro a última. Há erros grosseiros que se evitam. Mas há outros que só o são se assim os entendermos. Sexta-feira passada não caí em contradição. Tão-só não permiti que o medo de errar me impedisse de viver o momento.

26.8.08

Esperando aviões - Parte III

O "meu" voo SP-BH prestes a decolar de Congonhas. By Latinha

I find you in the morning
After dreams of distant signs
You pour yourself over me
Like the sun through the blinds
You lift me up
And get me out
Keep me walking
But never shout
Hold the secret close
I hear you say

(Cuts You Up, Peter Murphy)



Salto da cama ao toque do despertador, sem delongas e sem dar sequer tempo ao corpo de fazer manha. Ainda assim, Latinha faz-se anunciar antes do que previa ― por um triz, escapo à suprema vergonha de ser surpreendido de cabelo em pé, amarfanhado e a cheirar a ontem. Abro a porta. Aquele rosto, de sorriso escancarado, é-me extraordinariamente familiar, por mais que esta seja a primeira vez que estejamos, para valer, frente a frente.
Noutros tempos, é bem provável que eu e o Latinha trocássemos longas cartas, que demorariam semanas (quiçá meses) para chegar aos seus respectivos destinos, e nos tratássemos por “meu muy estimado amigo”. De certa forma, parece-me, há qualquer coisa nas nossas condutas e posturas que nos faz continuar a sentir, não raras vezes, como ovelhas tresmalhadas entre pares ― e foi isso, mais até do que a feliz coincidência de escolhermos o mundo de Oz e a estrada de tijolos como analogia para uma nova fase das nossas vidas, que nos aproximou ― e a sentirmo-nos fora de contexto, ou, em outras palavras, lost in translation.

Ironia ou não, o facto é que foram, precisamente, as novas ferramentas do mundo moderno a permitir que, no espaço de um ano e pouco, nos tornássemos amigos e, até certo ponto, confidentes. Por isso, naquela manhã parda de uma São Paulo a prometer (finalmente) chuva, dei-lhe um abraço, puxei-o para dentro e tratei de o instalar, dispensando maiores cerimónias, numa cadeira enquanto me continuei a barbear. Latinha saíra ainda de madrugada da sua cidade, mas não acusava o menor vestígio de cansaço. Pelo contrário, mostrava-se ansioso em retomar a conversa no ponto onde havíamos parado dias antes. E foi o que fizemos. Não mais por MSN, por e-mail, por Skype ou até de webcam ligada, mas como dois antigos roomates que se reencontram. A grande diferença foi que desta vez, para variar, não tivemos nem um Atlântico, nem um fuso ingrato de cinco horas a separar-nos.

Alguém se lembra de Os amigos de Alex (The Big Chill no original)? Este filme de Lawrence Kasdan marca-me até hoje. E, por curioso ou inusitado que vos possa parecer aqui a referência, o certo é que a minha passagem por São Paulo, que serviu de pretexto para estar com o Latinha, teve ainda um outro efeito colateral que me trouxe à memória esse filme. No estranho (e fabuloso também) mundo à parte dos blogues estabelecem-se afinidades e ligações que desafiam a lógica. Quando me iniciei em A Metamorfose de Oz, não tinha de todo a intenção de fazer amigos; muito menos de me dar a conhecer. Só que a vida troca-nos as voltas e, sem que me desse conta, fui quebrando, uma a uma, várias regras que me tinha imposto.
Além do Latinha, o Edu foi outra das pessoas que me "obrigou" a reconsiderar a minha postura e a baixar as defesas. O meu contacto com Edu extra-blogue é limitado, para não dizer mesmo escasso, ainda assim ele soube conquistar um espaço entre os meus afectos pelo seu humor certeiro, pela forma como encara a vida, pelos seus valores e, muito importante, como, de uma maneira ou de outra, ele arranja sempre maneira de se fazer presente. Latinha e eu brincamos que Edu é uma espécie de guru para nós, pois durante muito tempo fomos (e ainda somos, até certo ponto) os dois “gays” mais teóricos até onde a vista alcança nesta vasta blogosfera.
Na realidade, eu não sou muito de pedir conselhos, mas gosto de observar (mesmo que a uma distância segura). Edu, juntamente com Ricardo ― ora ai está outra figura-chave, já falei dele antes; ao contrário de Edu, não chega de mansinho, pois entrou de rompante na minha vida, soube antes de mim que íamos ser amigos e não esmoreceu quando me mostrei, tantas vezes, esquivo e arredio; hoje, além de um querido amigo, é também alguém que me ensina a não ser tão definitivo nas minhas apreciações ―, é quem está mais próximo de mim na faixa etária, mas olho para ele, e para a relação cúmplice e equilibrada de quase 9 anos que tem vindo a construir com o M. (aka Bichinho ou Mau-Mau), e não deixo de me sentir um quase “adolescente tardio”.
Excelente a tarde e noite que passámos juntos: Edu e M. vieram-nos buscar ao nosso hotel na Paulista e levaram-nos a passear pela “sua” São Paulo mais a norte. Fomos dos primeiros a visitar a casa nova, a experimentar as poltronas acabadas de estrear e a partilhar o leito da cama super king size (nada de pensamentos impuros, que só estivemos sentados à conversa e a troçar do ar desconfiado do vizinho da frente…). Fomos também voluntários na importante missão de testar a qualidade das pizzas locais.

Na manhã seguinte, eu e Latinha fizemo-nos à estrada. À nossa espera, em Campinas, tínhamos Z., amiga do Latinha há uns bons anos, uma daquelas pessoas que nos conquista desde o primeiro momento. Além de nos abrir as portas da sua casa por uma noite, Z. foi uma anfitriã que me guiou, apesar do tempo chuvoso, por lugares da sua cidade como a feira dominical de artesanato, o Parque Ecológico Monsenhor Emílio José Salim ou o restaurante Bráz. Mas, mais até do que isso, o que me cativou mesmo foi a sua disponibilidade para a vida, o seu olhar arguto e a sua mentalidade transversal. Falámos das nossas sexualidades sem tabus e sem falsos pudores. Rimos, brincámos e levei, pela primeira vez, eu acho, a sério alguém que me aconselhou a enfrentar o divã do psicanalista.

Até agora, só tenho falado dos encontros que aconteceram durante esta viagem, mas também houve desencontros. O primeiro deles ocorreu com o Jackson, que, na última chamada, não se deu. Já combinámos que ficará para uma próxima. O segundo foi com alguém que insiste em não sair da minha vida, mas que, nos momentos cruciais, não se comporta como um amigo, o que dirá de quem se diz com pretensões a ser muito mais do que isso. O terceiro, para ser justo, não chegou a ser bem um desencontro, pois, vendo a frio, só eu ponderei seriamente a ideia de um encontro. Não é muito do meu feitio correr riscos, sobretudo quando há luzes encarnadas a piscar e já fui avisado, mais do que uma vez até, a não tomar aquele atalho.
Ainda assim, trocámos várias mensagens telefónicas durante quase toda a minha estada no Brasil. É um jogo sem fim à vista, para já. Há afecto (e cumplicidade até onde ele deixa e eu estou disposto a ir), mas uma coisa chamada tesão impede-nos de sermos só amigos ― e seria, acreditem, muito mais fácil (e sensato) para os dois se nos ficássemos pela amizade. Mas não dá. Já tentei ser uma espécie de irmão mais velho, de me ficar pelo papel seguro de quem vê de fora, mas, a dado momento, a coisa resvala sempre para uma tensão que pede cama. Pergunto-me agora se algum dia ele terá maturidade, coragem e foco para sair da toca do lobo e se mostrar de corpo inteiro, despido de artifícios e ciente de que a paixão, como a vida, terá sempre o seu quê de impoderável.

Por fim, e após um breve retorno a Belo Horizonte, regresso a casa com muitos mais quilos na mala ― entre outras coisas, não resisto a trazer vários pares de sapatos e ténis. Em compensação, estou mais magro. Não suficientemente magro, mas já naquele ponto em que a minha mãe vai olhar, desconfiada, para o fundo das minhas calças e achá-lo com pano a sobrar... Mas, coração de mãe, é sabido, fraqueja; o mesmo já não posso dizer, infelizmente, dos Aussiebum e dos Blueman guardados na gaveta, que não enganam nem fazem favores. Santa futilidade, dirão alguns. Não se apoquentem. Esta viagem deu-me tempo de sobra para (re)pensar algumas coisas. Ainda não sou o homem que gostaria de ser, mas também já não sou mais o Homem que era ontem. Sei por onde vou, só não sei quando vou lá chegar.

Fim

18.8.08

Esperando aviões - Parte II

Por Jordi Labanda

I’m only human
Of flesh and blood I’m made
Human
Born to make mistakes

(Human, Human League)


Deixo Belo Horizonte ao final da tarde, já com a sensação de que ficam para trás rotinas, lugares e pessoas que se tornaram por demais familiares nos últimos dias. O meu avião para São Paulo imobiliza-se na pista de Confins quase uma hora, à espera provavelmente do okay de Congonhas, mas isso, por mais que me irritem atrasos de última hora anunciados aos bochechos, em nada interfere com os meus planos. Amigos e conhecidos estranham a minha escolha. Para eles, o lógico seria eu ir de malas aviadas para a Bahia, talvez para o Rio, mas não para São Paulo, essa metrópole desmesurada, com mais habitantes do que Portugal inteiro, conhecida pela sua neblina fina e pelas libelinhas ruidosas que riscam os céus ― tantas que a capital paulista só perde para Nova Iorque ― na esperança de fintar o famigerado trânsito. Em São Paulo, todas as horas são de ponta.
Mas eu gosto de São Paulo. Aliás, já gostava de São Paulo ainda antes de ali colocar os pés pela primeira vez, há uns bons anos. Logo, volto sempre que posso. Como todo o bom urbano-convicto, eu não me intimido com ruas maltratadas, gente a mais, condutores mercenários ou criminalidade. Não me incomoda também o lado anónimo da grande cidade, porque em (quase) todas elas eu sou capaz de traçar a minha geografia afectiva. É um facto, raramente fico sozinho em São Paulo ― e sim, isso faz muita diferença na hora de a enxergar a uma escala mais humana ―, mas eu gosto da arquitectura, dos restaurantes, das livrarias, das lojas, dos museus, do teatro, dos “inferninhos” da Augusta…

Três noites e dois dias. Não é muito para matar a saudade. Não vai dar tempo de passar no Ibirapuera, de comer no libanês do Paraíso, de ficar indeciso na padaria do Benjamim Abrahão, em Higienópolis, de me tentar com os pastéis do Zé, em Pacaembu, ou de me esbaldar na happy hour da Vila Madalena, mas, em compensação, não falho a taça de açai gelado na esquina da Augusta com a Oscar Freire, nem os meus pousos de sempre na Lorena, onde gosto de ficar à conversa com os empregados da Cavalera, de beber o expresso com muffin do Suplicy ou de me perder por entre as estantes da Livraria da Vila ― não é tão grande, nem tão diversificada, como a Cultura da Paulista, mas tem um traçado e uma disposição primorosos.
Na primeira noite, chego já tarde e sem disposição para uma balada feroz. Gosto de andar a pé, mesmo fora de horas e em São Paulo; aproveito que não estou longe, e que o espaço fica aberto até tarde, para ir comer o hambúrguer premiado do Ritz. Os mais poupados dificilmente acharão bem empregue o dinheiro que se paga por um pedaço de carne embrulhado em pão, mas os hambúrgueres do Ritz inscrevem-se na não-tão-nova-assim lógica de fazer de um prato rápido algo mais caprichado e (quase) gourmet. A carne é muito tenra, desfaz-se na boca, e a clientela… bem, a clientela da casa na Alameda Franca é famosa por ter feito dali um animado e concorrido point gay. Saboreio a carne, poupo a garganta ainda inflamada com um suco de abacaxi com hortelã e deixo-me ficar, entretido, a observar as manobras de diversão dos rapazes, a solo, em dupla ou em matilha. A noite está só a começar para eles, mas para mim o dia vai longo. Cama.

Sexta-feira. Passo os olhos rapidamente pela Veja São Paulo e, quando dou por mim, já vou a meio da Augusta à cata de ingressos para essa mesma noite. A crítica não poupa elogios à Festa de Abigaiu, uma peça adaptada a partir de um texto de Mike Leigh ― realizador de Closer, um dos meus novos “clássicos” ―, em cartaz há um ano. Confesso que, à partida, não sou grande entusiasta de comédias, mas esta, sobretudo na metade final, acabou por me arrancar umas boas gargalhadas.
Ainda não é meia-noite quando saio para a rua, mas a Augusta já está num frenesim de dar gosto. Não posso dizer que me sinto totalmente tranquilo por ali, mas o meu lado assumidamente voyeur sempre leva a melhor. Aquela coisa decadente do chamado Baixo-Augusta, na Consolação, outrora point da Jovem Guarda e zona chique na década de 1970, continua a ter muito de Boca do Lixo, que os apreciadores de uma estética trash-cult têm sabido manter. Gosto daquela mistura explosiva de cerveja barata e clubes nocturnos de putas e michês (os nossos chulos). Pelo meio ficam vários “inferninhos” dignos de nota, como é o caso do Vegas.
O Vegas foi-me apresentado por uma amiga paulistana há uns dois anos e desta vez, mesmo sem estar na cidade, ela não desarmou. Como ainda era cedo, comi à pressa uns temakis que não me deixaram saudades e lá me fui colocar na fila para entrar no Vegas ― muito organizada, a minha amiga havia-me colocado na lista de entradas dessa noite, mas eu esqueci-me de confirmar… Entrei à mesma. O Vegas mudou a decoração e, dizem as más-línguas, está a tentar imitar a iluminação do D-Edge. Os “informantes” da minha amiga, parece, também não aprovaram por completo a frequência da casa nessa noite, mas eu, que não sou freguês habitual, não quis nem saber e joguei-me na pista de copo na mão.
Achei o Vegas, liberal por vocação, muito mais gay do que da última vez, mas confesso que gostei de ver os dois “ursões”, que destoavam da maralha, a passar de mão dada sempre que iam aviar mais um copo ao bar. Lá pelo terceiro vodca com energético ― misturado com uma dose cavalar de Naldecon, não fosse a gripe querer ser mais teimosa do que eu… ―, o DJ de serviço é atacado por uma onda de nostalgia e vai repescar, mas com a devida batida techno, um clássico dos late 80’s. Não devo ser o único da casa a reconhecer Human, dos Human League, pois canta-se em uníssono. Eu bem tento juntar-me ao coro, mas, na altura do refrão, a voz atraiçoa-me ― grande maldade… sabe-se lá quando volto a ouvir Human League num porão escuro...
Só sei que o vodca, os Human League, as luzes, tudo junto, desviaram o meu foco para um casal. Estou para saber até hoje se eram namorados, mas isso também não vem ao caso. A cumplicidade entre eles era evidente. Ela, muito bonita, tinha um dragão enorme tatuado nas costas nuas, já ele apresentava-se com um look no melhor estilo “bom rapaz, mas tenta-me e verás”, e era igualmente delicioso ― pelo menos, àquele adiantado da hora, pareceu-me… Não me perguntem como, só sei que ― shame on me ― me insinuei claramente para eles. Já estava quase colado aos dois a dançar quando o meu alarme soou:
- Mas que porra é esta? Onde é que eu quero chegar?
Tudo bem que continuo a ser assaltado por uma certa ambiguidade, mas daí a envolver-me num triângulo de vértices pouco definidos não me pareceu o melhor caminho. Não agora. Não ali. Discretamente, bati em retirada antes que fosse tarde demais. Assim como assim, tinha a desculpa de não me poder esticar muito na noitada… Afinal, ainda antes das sete da manhã teria o Latinha a bater-me à porta do quarto…

(continua…)

11.8.08

Esperando aviões - Parte I


E o louco que ainda me resta
Só quis te levar pra festa
(
Esperando Aviões, Vander Lee)



Jeans brancos. Botas, camisa e blusão pretos. Acho que já passa das dez da noite quando me vou encontrar com eles. A Cantina do Lucas fica dentro do edifício Maleta, antigo reduto da boémia mineira, mas não os acho de imediato nas mesas do lado de fora. Toca o telefone. Aliviado, levo a mão ao bolso das calças e atendo; não me apetece nada ficar ali, especado, a revistar um por um todos os rostos até encontrar algum que me seja vagamente familiar ― claro que ser míope, e insistir em sair para a rua sem lentes, também não facilita a tarefa! São duas da manhã em Portugal, mas em casa querem saber se cheguei bem ― sim, cheguei bem.
Nisto, vejo alguém, que reconheço das fotografias, levantar-se de uma das mesas e acenar para mim. É o Ricardo. Será ele o primeiro que abraço. Ser o último a chegar ― a bem da verdade, não fui o último, já que Ludo e J. chegaram depois, mas deles falarei mais à frente ― tornou aquele momento menos óbvio do que esperava. Mas há, por mais que já tenhamos falado com aquelas pessoas antes, que já as tenhamos visto em fotos ou que até saibamos detalhes da sua vida pessoal que muita gente mais íntima desconhece, coisas que precisam de um tempo para acontecer. Todos se conheciam entre si, já tinham bebido o primeiro copo de cerveja gelada e não precisavam de articular o seu português para se fazerem entender. Eu, sabia-o desde o início, é que vim baralhar um pouco as regras do jogo e introduzir um elemento de novidade no grupo – um papel que, convenhamos, tirando uma certa timidez que ainda me deixa sem graça nos minutos iniciais, me agrada.
Assim que nos acostumámos à presença física uns dos outros ― curiosa, muito curiosa, essa coisa de termos um retrato robô pronto, que é preciso agora ajustar à pessoa que passa a estar, ao vivo e a cores, na nossa frente, do nosso lado… ―, e que eu desacelerei o meu sotaque lusitano, tudo fluiu naturalmente. E o resto do serão, na companhia do Ricardo, do Marco, do Leandro, do Ludo, de J. e de outras pessoas que se juntaram a nós, foi o que era suposto ter sido: um encontro de amigos e uma forma muito prazenteira de eu assinalar o meu regresso a Belo Horizonte.


O apartamento de Marco, onde ficaram Ricardo e Leandro, acabou por funcionar como quartel-general, onde as tropas se reuniam, em amena cavaqueira ― na verdade, as conversas eram calorosas; amena esteve quase sempre a temperatura em BH, apesar dos protestos veementes da infantaria carioca, habituada a um Inverno de trinta e muitos graus! Rsssss ―, ao redor de taças de sorvete com generosas colheradas de doce de leite Viçosa (um vício de Marco altamente contagiante, tanto que eu, antes de me ir embora da cidade, fui ao Mercado Central abastecer-me de tão precioso levanta-moral). Como Marco é um rapaz recatado(?), estou, até hoje, em crer que o entra e sai de tanto homem junto naqueles dias terá provocado um ou outro franzir de sobrolho na portaria do prédio. Mas tudo decorreu sempre no maior decoro… até mesmo naquela manhã de domingo, em que eu, Marco e Ludo, depois de termos varado a madrugada na Jô ― a mais badalada e elitista boate gay da capital mineira, com direito a descamisados sem ruga no peito nem prega no colarinho, gogo boys rebolativos, cenas a três, cenas a dois e cenas múltiplas, mas sem que ninguém se tenha de sentir desconfortável por isso ―, irrompemos pelo apartamento e acordámos Ricardo, Leandro e Arthur na batucada (os dois primeiros ficaram de molho devido ao clima “ameno”; já Arthur, o namorado de Marco, aproveitou a desculpa para ficar a dormir que nem um justo). Para compensar, havíamos passado antes na padaria e comprado pão fresco e broa mineira (que, para minha surpresa, leva coco!) para o primeiro café do dia da rapaziada. Vencidos pelo cansaço, Marco e Ludo, que já foram namorados e hoje são os melhores amigos, "apagaram" na cama de casal; não sem antes me oferecerem, encarecidamente, uma vaga. Achei melhor declinar o convite, não por nós ― que somos todos rapazes de família! Rsssss ―, mas por ter a certeza de que não se escapa incólume duas vezes de uma situação embaraçosa.
[Momento rewind: final de noite na Jô, ainda tomados pelo álcool, eu e os rapazes achámos por bem realizar, como lhe poderei chamar sem melindrar os profissionais do ramo?, uma pequena performance num dos queijos onde antes tinham actuado os gogo boys].
Dessa vez, felizmente, não houve fotos para mais tarde recordar, mas desta feita eu sabia que não teríamos a mesma sorte, pois o “capeta” andava de máquina à espreita… Fui flagrado sim, mas sozinho, no sofá da sala, antes de me levantar estoicamente para acompanhar os madrugadores de plantão numa incursão à feira dominical da avenida Afonso Pena ― e lá fui eu, não muito viçoso, mas ainda assim airoso, sem óculos escuros para aliviar a ressaca, de caveira ao peito e correntes à cintura!


“Meu pai é que tinha razão… Como é que uma pessoa do meu nível social e intelectual poderia ficar com uma bichinha afectada como você”. Estou sentado a duas mesas de distância, mas ainda assim ouço, sem esforço algum, todo o desenrolar da novela que ele, “a bichinha afectada” em pessoa, conta com detalhes sumarentos.
Na realidade, ele fala para os seus dois amigos, um homem e uma mulher que mal abrem a boca, mas o seu tom de voz faz com que boa parte dos transeuntes da calçada, dos restantes clientes e dos empregados que àquela hora serviam à mesa no Café com Letras, um espaço para lá de simpático na Antônio de Albuquerque, ficasse a par do seu desaire amoroso e de como o “namorado o maltratava só pelo facto de deixar a escova de dentes molhada na mesa”…
BH é hoje, para minha relativa surpresa, uma cidade cada vez mais gay friendly. Claro que não nos podemos deixar iludir pelas aparências, até porque os mineiros são conhecidos pelo seu conservadorismo, mas o certo é que, além de se multiplicarem na cidade vários espaços assumidamente gays, é fácil detectar na rua ― e em pontos públicos tão diversos como o Mercado Central ou a Feira de Artesanato, que possui mesmo um Ponto G! ― a presença de “colegas”.
E isso, às vezes, acontece mesmo em lugares inusitados, como é o caso do MP5, um clube-galeria, lá para os lados da avenida Raja Gabaglia, onde insisti em ir numa terça-feira à noite. Nem Marco nem J. conheciam o espaço, mas a minha experiência anterior tinha-me revelado um local animado, com boa batida electrónica e gente bonita. Chegados ali, não demorámos nem cinco minutos a perceber que a casa, além de meio vazia, estava por conta dos rapazes. Rapazes que gostam de rapazes, entenda-se. Enfim, não arrepiámos caminho de imediato, dançámos, fizemos por não entrar em rota de colisão com a “loura alucinada”, tirámos as fotos da praxe ao colo do patinho cintilante da entrada – não tirem conclusões precipitadas, o pato é uma graça! Rssssssss ― e acabámos num posto de abastecimento, a aquecer cachorros com molho cheddar no microndas. De brinde, além de animarmos a noite dos pobres miúdos que trabalhavam sem música no posto, ainda levámos para casa porta-sapatos.


Nesta minha passagem por “Belzonte” ― piores do que nós, portugueses, para “engolir" sílabas, só mesmo os mineiros, sobretudo os do interior, que ainda assim têm um sotaque cantado delicioso ―, fui quase sempre apresentado como “amigo do Marco”. O Marco, é bom que se diga, além de excelente pessoa, é um advogado que trabalha no duro para se afirmar, orgulho do pai, da mãe e dos amigos. Marco é também discreto na sua postura perante o mundo e a sociedade, mas muita gente à sua volta tem sabido, progressivamente, da sua orientação sexual. Logo, ser apresentado como “amigo do Marco” acabou por ter um peso e por, desde cedo, me dar uma “cor” à qual não estou habituado.
Não vou dizer que encarei isso de ânimo leve, mas, pela primeira vez na minha vida, aceitei não fazer disso um cavalo de batalha. Aceitei, inclusive, que muitas daquelas pessoas, que não tinham qualquer juízo prévio a meu respeito, fizessem as suas deduções. Se me incomodou? Incomodou um pouco, não vou mentir, mas ajudou-me também a constatar que a grande maioria daquelas pessoas encara a homossexualidade de forma aberta. Tão aberta que se permitem mesmo fazer algumas piadas a respeito, o que é sempre bom para quebrar o gelo.
Entre todas elas, houve uma com quem acabei por conviver de muito perto, até porque foi ela, na ausência de Marco ou Ludo, a minha grande companhia nas tardes de ócio. J. é o que se pode chamar, se quisermos colocar um rótulo, de fag hag, uma espécie de Grace na vida do Will/Marco. A cumplicidade entre os dois é algo muito bonito de sentir, mas foi um processo que exigiu amadurecimento de parte a parte: J., como tanta mulher que se vê rodeada de gays e passa a fazer disso uma realidade, demorou a perceber que tinha de ter a sua vida, os seus amigos e os seus amores fora deste círculo restrito; Marco aprendeu que pode tê-la sempre por perto, mas que há coisas que ela precisa viver sem tê-lo ao pé para apagar os fogos.
Conversei muito com J. Passeámos no shopping, tomámos chocolate quente no Kahlua, almoçámos no Minas Clube, estivemos na sua casa a ouvir música, a ver fotos de família… Ela falou-me dela e quis saber de mim. E eu, que gosto tanto de observar as mulheres, de ver com elas mexem no cabelo, como se movimentam, como tocam, fiquei fascinado com a espontaneidade e a graciosidade de J. ― mesmo quando a flagrava a tentar medir a minha reacção à passagem de outros homens ou quando ela, sem dar parte de fraca, armou um encontro “casual” entre mim e um seu vizinho gay… J. tornou-se, em poucos dias, uma amiga querida e devolveu-me a certeza de que eu, por muitas voltas que a vida dê, vou sempre viver rodeado de mulheres. Elas fazem-me muito bem.

(continua…)