20.4.08

Numa noite de chuva...


I've been looking for a savior in these dirty streets
looking for a savior beneath these dirty sheets

(
Crucify
, Tori Amos)


Não falta muito para as cinco da manhã quando o Will me deixa na esquina. Insisto que posso percorrer a pé a meia dúzia de metros que me separam da porta do prédio, apesar da noite chorar copiosamente. Gosto de chuva, mas prefiro vê-la da vidraça, já a salvo, enquanto me liberto da roupa impregnada de tabaco. Apetece-me cair na cama, mas antes atiro para o fundo da chávena um punhado da mistura perfumada que trouxe. Verto a água em ponto de fervura sobre a infusão e dela se desprende, aos poucos, o aroma a canela. Está pronto o chá. Noto agora, estou ligeiramente ressacado.

Ainda oiço, cada vez mais distante, a voz de Tori Amos interrogar-se: why do we crucify ourselves? Sei lá eu… tenho sono e não estou para pensamentos profundos a esta hora. Aninho-me no edredão em vez de me esparramar na cama que esta noite tenho só para mim. Adormeço ao som da chuva, como gosto.

O domingo amanhece indeciso. Levanto-me amarrotado. Decididamente, estou ligeiramente ressacado. Saio para comprar o jornal e decido tomar o pequeno-almoço na rua, rodeado de gente sem nome. Esta coisa de ser um rosto anónimo na grande cidade nunca me incomodou. A cidade está-me nos genes.

Curioso, porque na véspera, por umas horas, despi a máscara do anjo negro e mostrei-me apenas como um homem. Sem asas e sem a distância segura da escrita. Um salto sem rede calculado, ainda que não seja fácil chegarmos fashionably late – com diria o sacana arrogante, mas bom todos os dias, Brian de Queer as Folk – a um jantar com 30 e poucos bloggers e não bloggers (não os contei…). Sobretudo quando todos os olhos se viram na nossa direcção e nós apenas reconhecemos um ou dois rostos, no máximo, e isto porque os vimos antes em fotos. Felizmente tinha o Will como fiel escudeiro – aliás, e porque nunca é evidente quebrar o gelo com tanta gente em tão pouco tempo, foi ele, mais do que todos os outros, que fiquei a conhecer ainda melhor. Mas gostei, por exemplo, de confirmar que o Pinguim é exactamente aquilo que dá a ver no seu blogue; que o Papagueno, afinal, também é o Special K; que o Teddy Bear e o Little Teddy Bear estão focados um no outro mas não excluem os demais; que citar Clarice Lispector, mais do que oportuno, foi um acto de generosidade do Paulo e do Zé; que a Keratina soube encarar com galhardia o facto de ser a única mulher entre muitos homens madrugada fora; ou ainda que o Luís Galego, hábil na arte de lançar o enigma como ardil, daria ele também um bom objecto de análise.

E mais haveria, por certo, a comentar, mas eu, que gosto sempre mais de observar do que ser observado, resolvi que me apetecia, mais do que tudo, dançar e beber. E foi isso que fiz até decidirmos, eu e o Will, que estava na hora de bater em retirada. Ainda não chovia.

19 comentários:

Unknown disse...

E eu que não te vi sem as asas :P
Fica para a próxima, ainda bem que correu tão bem.
Abraço ;)

Alberto Pereira Jr. disse...

ai é muito bom conhecer pessoalmente as pessoas que lemos todos os dias né?

Will disse...

Fogo... se chovia!

Deixa lá: se deu para ficares a conhecer-me melhor a mim, já não foi mau de todo, eheheh!

Ah... e para a próxima entras tu à frente :p

João Roque disse...

Que bom é despir, por vezes, as máscaras, as negras e as demais e vestirmos, como dizes o traje de Homem.
Podemos talvez sentir-nos mais expostos, mas simultâneamente muito mais livres.
Abração.

paulo disse...

Caro Oz, gostei de te ver de negro e sem asas, mas também de te ver dançar. Sem máscaras. Não deu para muito mais e fiquei com curiosidade de conhecer melhor, já que trocámos muito poucas palavras. Claro que o risco foi calculado, afinal todos nós somos boa gente, todos nós temos o cuidado de não querer ferir a susceptibilidade de ninguém, mais não seja por respeito. Espero que possamos trocar mais palavras da próxima vez! Como deu para ver, também gosto mais de observar do que de falar. Pode ser que da próxima vez seja mais fácil.
Um pormenor: Clarice Lispector é uma das minha heroínas, uma mulher máxima em tudo, sobretudo na escrita. Partilhá-la foi muito simples, um acto muito pequeno para os sentimentos que me percorreram nos momentos em que me pus a fazer o papel que vos dei.
E obrigado pelo link! Tu também já fazes parte da minha elite.
Um abraço

SP disse...

Já passei por vários blogues e sinto o carinho e a amizade que ficou dessa noite.
É bom saber isso com o coração!
Um abraço, como sempre...

Luís Galego disse...

"Luís Galego, hábil na arte de lançar o enigma como ardil, daria ele também um bom objecto de análise.".

fiquei curioso.muito.

Texto bem escrito, produto de alguêm que lida bem com a palavra.

FE disse...

Desculpa a invasão, mas gostei do texto :)

E Tori é deus ;)

Voltarei!

*

papagueno disse...

O pior de tudo é mesmo o cheiro horrível a tabaco que fica na roupa. De resto foi um prazer.
Um abraço.

Socrates daSilva disse...

Uma visão interessante e complementar dos outros relatos.
Como sempre
Abraço

MrTBear disse...

Ai... Corei!!! eu que não sou nada disso, sou mais de vinho tinto....
Gostei muito de te conhecer, até uma próxima.
Abraço

Anónimo disse...

Que bonito. Quero passar por esse momento de perder as mascaras com meus amigos do Blog. Beijos

LittleTB disse...

Não estamos assim tão colado...

Bem, quer dizer... Estamos pois... lol

Gostei de te conhecer!!!

Abraço

André Mans disse...

...e da chuva, nada entendo.

FOXX disse...

gente
foi o primeiro encontro portugues de bloggers? hehehe

Kokas disse...

Dessa noite guardo boas memórias, mas o preço a pagar foi alto: De cama três dias! :(

Vai haver outras oportunidades!
Aquele abraço

Paulo Mamedes disse...

Heheheh, ai que legal!!
Adoro encontros, mas nunca fui em nenhum... hauhuuhua

Enfim, estamos aqui combinando um regabofe a séculos...hehehe

Abração!

No Limite do Oceano disse...

Só por teres mencionado o nome da Tori Amos faço questão de deixar aqui umas palavras. Crucify talvez seja das primeiras músicas que ouvi dela, mas se conheces o trabalho dessa excelente cantora, o que te posso dizer é que gosto das mais simples músicas apenas com um piano até às que têm electrónica misturada no meio. Todas elas ficam bem com uma noite de chuva.

*Hugs n' smiles*
Carlos

Latinha disse...

Nada como aproveitar as oportunidades que a vida nos oferece para poder "viver". Tenho certeza que a noite deve ter sido muito agradavel e seu cuidado e classe na descrição só contribuem para nos deixar com uma imensa vontade de ter ido. ;-)

Grande abraço para você!!!

(Quanto ao moreno "do sotaque" [eheh] era apenas "figuração", infelizmente ou felizmente a cada dia tenho mais certeza que ele é só um personagem que mora nos meus pensamentos ;-) Espero que tenha tudo corrido bem!)