19.5.08

A febre de sábado à noite


You could be from Venus
I could be from Mars
We would be together
Lovers forever
Care for each other

(Venus, Air)


Sábado. Princípio de noite às portas do Bairro [Alto]. Corre uma aragem fria, mas a lua plena, reparo agora, está pregada como uma jóia de prata no vestido de veludo preto sem mácula. Antes de começarmos a beber, precisamos comer qualquer coisa rápida. Àquela hora, os restaurantes e tascas estão todos a abarrotar, mais a mais, não é bem isso que nos apetece; sobretudo quando, ainda há dias, matámos as saudades dos filetes de polvo do Sinal Vermelho.

Depois de uma incursão falhada a uma das capelas do costume, assentamos arraiais no Vertigo. Gosto deste café ― e da sua clarabóia de vitrais, da mesa junto à janela, a minha preferida, das velas acesas dia e noite e de poder matar a fome, sem me preocupar se o horário é próprio ou não, com comidinhas simples e saborosas. Sinto-me bem ali, mas, depois do café, decidimos mudar de poiso. Ala que se faz tarde. Voltamos a cruzar a Brasileira, mas junto à Praça do Camões atalhamos pela Atalaia. Ainda espreito o Mexido, na Rua da Trombeta, mas é cedo e está às moscas. Na esquina com a Fiéis de Deus, ancoramos junto ao balcão do Majhong, meu porto conhecido de há muitos anos, mesmo que leve décadas a passar ao largo. Abrimos as hostilidades com Morangoskas e gin tónico. A conversa anima, junta-se mais um a nós e, a dada altura, já nem prestamos mais atenção se vagam ou não lugares sentados. Permanecemos de pé, a dançar a versão mais foleira de Tainted Love e a brindar ao que a vida tem de imprevisível e fortuito. De vez em quando, desligo da conversa e deixo-me hipnotizar, momentaneamente, pelos candeeiros verdes que pendem do tecto como alforrecas (águas-vivas).

Sacamos dos telemóveis aos primeiros sinais de mensagem. Marca-se novo ponto de encontro. Uma da manhã. Desaguam aos magotes nas ruas do Bairro e deixam-se ficar ao sabor das marés, mas nós nadamos contra a corrente até atingirmos os rápidos da Calçada do Combro. Sinto-me, cada vez mais, numa noite de resgate do que já fui, ainda que nem todas as portas me sejam familiares. Mas aquela, quase em São Bento, não demoro a reconhecer. No Incógnito fui feliz, mas era outra época, outras pessoas.

Organizamos as tropas à porta. Quando entro, num primeiro impacto, estranho as cores, mas a geografia da pista, afundada mais abaixo, é-me familiar. Por esta altura já emborquei dois gin tónicos e vou a caminho do terceiro. A noite é uma criança. Aos poucos, a pista vazia ganha vida, mas quando eu e mais alguns estávamos a começar a entrar no espírito, alguém se lembra de que aquilo já deu o que tinha a dar e que se impõe nova mudança. Há um náufrago a lamentar.

Distribuídos por vários táxis, rumamos, desta feita, para as vielas manhosas do Cais do Sodré, onde as putas e os marinheiros de água doce cederam, faz tempo, a vez aos que se dizem alternativos e avessos a lugares da moda. Agora, como antes, posso até parecer uma personagem deslocada naquele cenário de opereta bufa, mas sou capaz de desfiar o meu rosário de boas lembranças em praticamente cada um daqueles antros apertados e escuros. Infelizmente, o Tóquio está a rebentar pelas costuras, ainda é cedo para ir ao Jamaica ou ao Europa, por isso, meio que a contra-gosto, vou bater com os costados no Music Box. Lá dentro prefiro o vodka com energético ao charro (baseado), enrolado às escondidas, que vai passando de mão em mão. Africa is the future - pode-se ler no telão, mas, a partir de uma certa altura, a minha tolerância para com o som afro de batida tecno está quase a zero. Felizmente, lá pelas quatro e meia da manhã não sou o único a pensar a mesma coisa. Uns ficam, outros, como eu, batem em retirada e despedem-se à francesa.

Não falta muito para as cinco da matina, mas a fila para entrar no Lux não dá mostras de abrandar. Como sabemos o que a casa gasta não desesperamos. Dois suecos patuscos metem conversa, o que ajuda ainda mais a passar o tempo. Uma vez lá dentro, passamos uma revista rápida aos três ambientes da casa, mas não perdemos tempo a ir reclamar o que é nosso a um dos balcões. Por esta altura, já perdi a conta ao que bebi, mas como o corpo continua a não acusar o toque, não vejo por que parar. A desproporção entre homens e mulheres salta à vista desarmada, com a clara predominância dos primeiros, mas ninguém parece importar-se muito. Eu muito menos.

A nossa propensão para morcegos, leva-nos a preferir o som da pista no porão. Às seis e meia, os meus pés dão o primeiro aviso de que não tardo a virar abóbora, mas continuamos a dançar ― e a beber ― até quase ao fecho. Saímos para a rua já passa das sete. Os vampiros mais batidos nestas andanças trazem postos os óculos escuros, evitando assim cegar com os primeiros, e cruéis, raios de claridade. Depressa desistimos da ideia peregrina de ir tomar o pequeno-almoço. Aterro na minha cama pouco depois das oito. Dormirei nem quatro horas seguidas. Porque hoje como ontem, por mais que os anos tenham passado e eu seja um homem feito há muito, uma noitada não é desculpa para não estar presente à mesa, com os meus pais, no almoço de domingo.

13 comentários:

João Roque disse...

Noite cheia! De locais, de dança, de copos...de Vida!
São sinais bons de vivências por que passei, noutros locais e tempos, por isso as compreendo tão bem, embora hoje as não pratique; tudo tem o seu timing, até "a noite"...
E o remate, sem pretensões a ser moralizador, é apenas sinal da consciência que se tem dos valores marcantes da vida.
Abraço amigo.

Pralaya disse...

Bem a tanto tempo que não faço uma noitada como esta descrita aqui, realmente das 2 uma ou estou a ficar sem idade para tal ou já não tenho quem me faça companhia.
P.S. - Faz como eu passa o almoço de Domingo para almoço ao Sábado hehehe é mais proveitoso e menos violento ;)

Anónimo disse...

Afe, fiquei com sono só de imaginar, hehe... Mas deve ter se divertido à beça! Beijo!

LittleTB disse...

Grande noite... Por estes lados foi mais a de 6ta que foi comprida...

Abraço

MrTBear disse...

Mas não tão variada LOL, que este burgo ainda não saiu da casca :)

Râzi disse...

Agora essa budega funcionou!!!

Ah... mas perdi o clima pra comentar!!!

Morcegão! hauhaauhauahauauh1

Quero tirar muitas fotos suas saindo da boate de óculos escuros!

ahauhauhauahauhauhuahauh!

Beijão!

Paulo Mamedes disse...

Pra vc que ganha em EURO vai fazer a festa aqui no Brasil, nas lojas, nas baladas... hehehe

Abração

San Lee disse...

Que noitada!!!
Uma balada dessa sempre vale a pena!

Muito legal e bem escrito o blog, voltarei outras vezes.

Saudações!

Tarco Rosa disse...

Gostei do clima que se instaura no conto e da inversão de expectativas. O ser noturno, maduro, homem feito, que preza o almoço em família.
Um grande abraço

jacques disse...

também sou de sair à francesa.
beijos.

Goiano disse...

gente eu nunca me lembro de nada

se eu tivesse q descrever meu sabado ia dar 3 linhas
auhuauha

ps.: nada envolvendo tainted love pode ser fuleiro heheheh

abraços

FOXX disse...

taí uma coisa naum mto comum de ver aqui

Will disse...

Ai como eu me revi neste teu post caro Oz... e não, os almoços de domingo nunca serão preteridos pelo sono ou pelo cansaço :)