Is this the place, we used to love?
Is this the place that I've been dreaming of?
(Somewhere Only We Know, Keane)
Ninguém está a salvo dos seus (falsos) pressupostos. Muito menos eu. Tenho vivido todos estes anos plenamente convencido de que nunca me apaixonei para valer e, de tanto o repetir, o que começou, na verdade, por ser uma mera interrogação acabou por tomar ares de certeza (quase) definitiva. E ai transformou-se num daqueles postulados idiotas que não me suscitam orgulho, mas também não me provocam dramas existenciais e/ou recriminações. Foi mais o tipo de coisa que deixamos dobrada no fundo de uma gaveta, na qual até remexemos de quando em vez, mas que não nos damos ao trabalho de despejar para fazer uma selecção do que fica e do que vai fora porque deixou de servir.
Agora, colocando vários episódios recentes em rewind, já não tenho tanta certeza assim... Acho mesmo que há a chance, séria e real, de me ter apaixonado, quiçá até mais do que uma vez, e de não ter dado conta... Parece altamente improvável, esdrúxulo até, eu sei, mas quem se apressar a pensar assim estará, porventura, a cometer o mesmo erro grosseiro que eu.
Entre outros devaneios que não são para aqui chamados, passa-me pela cabeça que eu poderei ser do tipo que não sabe reconhecer em si os sinais da paixão. Dito de outra forma, começo a desconfiar de que, vá-se lá saber porquê, eu ter-me-ei persuadido que paixão era uma determinada coisa, uma coisa tão arrebatadora e tão inequívoca que, ao passar por mim, eu teria, necessariamente, de parar para lhe prestar atenção. E por arrebatador e inequívoco leia-se arrepios na espinha, estômago embrulhado e pernas titubeantes se essas fossem imagens poéticas do meu agrado, mas esse talvez esteja a ser o meu mais terrível e traiçoeiro engano.
Talvez a paixão não me deixe indisposto. Talvez ela me deixe antes disposto para cometer loucuras e actos apressados. É que, para quem se diz intocado pela paixão até hoje, eu tenho cometido vários de cada nos últimos tempos. O que me leva a matutar: se eu sou capaz de loucuras e de gestos grandiosos por pessoas a quem apenas quero bem - ou me suscitam curiosidade, que é uma palavra cautelosa que eu passei a empregar amiúde para salvar a face em caso de derrocada iminente -, o que farei quando realmente achar - tiver a certeza? - que estou arrebatadora e inequivocamente apaixonado? O chão vai tremer? Os sinos vão dobrar? Vai parar de chover? Cristo desce novamente à Terra? Provavelmente, não; provavelmente, não. Percebem onde quero chegar?
Se não entenderem também, não é caso para se incomodarem. Até porque nada do que escrevi até estas linhas é para fazer (muito) sentido. É mais um exercício de lógica e de purga a que me sujeito num dia em que acordei de bem com a vida e comigo. Não que seja raro eu acordar de bem com a vida e comigo, pois passo ao largo das criaturas que foram amaldiçoadas com um despertar rabugento e ácido, mas acontece que sobrevivi a uma manhã particularmente merdosa. Uma manhã em que me vi sozinho num lugar onde não queria estar, sem referências e sem um rosto familiar por perto. Pior, descobri-me longe das pessoas com quem deveria realmente estar naquela manhã de celebração.
Não vou armar-me em forte nem em
blasé e dizer que tirei de letra aquela manhã; não tirei. Ela custou a passar e foi dolorosa. Demorei horrores para sair daquele lugar; e demorei ainda mais para me libertar do que me conduziu àquela manhã. De certo modo, uma parte de mim ainda está presa naquela manhã. Mas, como disse, sobrevivi. E sobrevivi inteiro e em paz.
Não se iludam. Não faço minimamente a linha dos que dão a outra face sem ripostar, sem ferir. Mas, não gosto de passar por uma provação sem ficar com o consolo de que, ao menos, aquilo me serviu para aprender a lição. Por isso, em vez de estar furioso e de querer esmurrar alguém que, apesar de todas as vigílias nocturnas, ainda não atingiu o grau de humildade e humanidade necessário para se colocar, por um instante que seja, na pele do outro, eu estou grato.
Porque quando alguém bate a porta, a meio de uma madrugada chuvosa, sem se importar com o que deixa para trás - porque não soube apreciar a nossa companhia, porque não se ralou muito em perceber os nossos gostos e nem sequer hesitou ante a certeza do que tivemos de abdicar para estar ali -, é caso para perder o sono. Mas não é caso para perder a esperança.
Naquela manhã, arrependi-me duramente de não ter dado ouvidos à minha intuição que, por mais de uma vez, me segredou para não ir. Teimei e fui, paguei um preço alto, mas conquistei na adversidade algo inesperado: se, com todas as minhas limitações, desacertos e dúvidas, decidi ir ao encontro - num gesto quem sabe precipitado, admito, mas que me exigiu generosidade e coragem - de alguém que, não obstante a inconstância, a imaturidade e até um certo desapego a roçar a frieza, me tem inspirado, mais do que tesão ou desejo, um carinho genuíno e uma vontade legítima de tentar ir mais além (porque falar em química é vago), então eu ainda tenho esperança. A esperança de que, tarde ou cedo, eu vou deixar de ser uma excepção para passar a ser uma regra. A regra dos que se apaixonam, com ou sem arrepios, com ou sem borboletas, nem que para isso tenham de partir a cara mil vezes.
Cansei-me de ser a excepção que confirma a regra. A manhã passou; ficará o orgulho ferido, quando muito, e uma mágoa que nem sequer é (só) de agora. Mas o que aprendi sobre mim naquelas horas, isso eu vou querer lembrar sempre.