Im a loser baby, so why dont you kill me?
Take 1
Sexta-feira à tarde. O termómetro marca mais de trinta graus. Deixar o trabalho em banho-maria para me escapulir com a amiga a tiracolo rumo à praia tem, de repente, aquele mesmo gostinho a travessura de quando, ainda adolescente, fazia gazeta às aulas para me enfiar numa matiné do King ou do Quarteto. Pena que tanta gente tenha a mesma falta de sentido de dever... O comboio para Cascais já sai do Cais do Sodré sem um único lugar vago. Saltamos na estação certa e caminhamos um pouco. Felizes da vida por Lisboa, com todos os seus defeitos, ainda nos proporcionar prazeres simples como este, que é o de ter várias praias a meia-hora, se tanto, de distância. Em lugar da brisa, que seria bem-vinda, o vento que se levanta varre o areal, soltando grãos de areia que fustigam a pele. Depois de lagartear ao sol, vamos à água. Está fria. Está estupidamente fria. Ela não se atreve para lá do tornozelo, eu insisto. Ela aplaude a minha bravata. Deixamo-nos ficar depois, enrolados nas toalhas, à conversa. Diz-me ela:
- Cheguei à conclusão que nós, mulheres, na ânsia de querermos ser modernas, muitas vezes não conseguimos mais do que ser modernosas. Ficamos a tentar provar aos homens que também somos capazes de ser desprendidas, que podemos encarar o sexo da mesma forma que eles, mas, a verdade é que não somos assim e não temos de o ser. Estamo-nos a violentar! Temos de deixar de ter vergonha e dizer que aquilo não nos basta e que queremos mais.
Confesso que não a levei muito a sério. Não por discordar; mas por achar que, no fundo, aquilo era mais para se justificar do que para seguir à risca. Talvez por isso, ou porque os homens - mesmo os que se dizem capazes de ouvir uma mulher - raramente desviam os olhos do que fica para lá do seu umbigo, enquanto ela falava eu estava mais entretido em comprovar os efeitos nefastos da água gelada na anatomia masculina... Futilidade? Com certeza, mas quem nos pode levar a mal se até mesmo os Beckham desta vida não gostam de ficar mal no retrato quando se exibem em público em trajes menores?!
Take 2
O final de tarde promete. Está-se bem na praia, mas temos sede. Fome também. Recolhemos a trouxa e assentamos arraiais na "nossa" esplanada preferida desde outro dia. Bem de frente para o mar. Enquanto esperamos pelo pedido, ela saca de um livro de Machado de Assis e dá-me a ler a dedicatória que um amigo lhe deixou. Palavras bem articuladas. Palavras de quem a conhece do direito e do avesso. Não lhe faltam homens amorosos na sua vida. Faltam-lhe, quiçá, homens que ela não tenha pressa em amar... Claro que guardo isso para mim.
Primeiro trazem o sumo de maracujá - gelado de fazer estalar a língua, como gosto. Depois trazem a tosta de frango. Reparo que o pão vem cortado em forma de coração. O que aconteceu às velhas e tradicionais tostas em pão quadrado? Há uns bons anos, uma colega minha de universidade perguntou-me se era romântico, ao que lhe respondi, com a ironia possível dos vinte anos, "tenho dias...". Pois tostas em forma de coração continuam a não me comover. Lamento. Mas isso sou eu, um gajo a quem, ainda há semanas, acusaram de, no que toca a manifestações de carinho, "ser de uma frieza quase cirúrgica"... Bom, por mais que isso "faça parte do meu show", a prova de que no meu peito desafinado também bate um coração é que não pude deixar de me sentir incomodado quando, a meio da minha tosta, ela se saiu com o seguinte desabafo:
- Decidi que não vou mais responder ao 'ser humano'... Se ele me mandar e-mail, se ele me procurar no MSN, não vou responder... Nem vou atender o telefone! Isto se ele ligar, o que eu duvido! Mas se ligar, não vou atender também... Bom, talvez atenda, mas só se ele ligar mais de uma vez...
'Ser humano' foi o codinome que ela arranjou para não ter de dar nome aos bois; neste caso um marmelo que ela, por mais que esteja à frente do seu nariz a canalhice (e cobardia, caramba como nós, homens, podemos ser cobardes na hora de sair de cena!), não consegue descartar de vez. E isso aflige-me. Aflige-me que ela, uma mulher atraente, rápida no gatilho e independente, esteja há dois meses sem namorar - um namoro que, diga-se de passagem, durou apenas três semanas - e já acuse o peso (o vazio?) da solidão.
Take 3
Vou a casa tomar banho, trocar de roupa e comer qualquer coisa rápida antes de voltar a sair. Sexta à noite. Encontro marcado no Bairro [Alto] para abrir as hostilidades. Levam-me duas cervejas de avanço. Apetece-nos dançar. A mim apetece-me, pelo menos. Vamos para a Bica. As ladeiras a pique, que ainda há dias mal continham a enxurrada de gente, estão agora mais desafogadas, mas ainda assim, a parca calçada em socalcos está semeada de grupos à conversa. Apostamos no Bicaense, mas a pista está às moscas. Não ficamos e continuamos a descer até ao Lounge. Assumidamente retro, o Lounge está composto e aposta num som à la Pulp Fiction. Mais uma cerveja, mais um brinde a coisa nenhuma. Dançamos. Até que alguém olha para o relógio. Já começam a ser horas de descer aos infernos. Tóquio, Music Box ou Jamaica? Como elas não pagam, são elas que entram primeiro para tirar o pulso às casas. Hesitam, mas, sem grande convicção, lá se decidem pelo Jamaica. Ao contrário daquele bar que passava na televisão, onde toda a gente sabia o nome de toda a gente e onde todos metiam o bedelho na vida uns dos outros, no Jamaica a familiaridade não chega a tanto, mas é o tipo do lugar, desprovido de qualquer graça natural, onde se canta em uníssono a música dos anos 80 que deixou saudades - incluindo a mais foleira; sobretudo a mais foleira - e se tem a garantia de que se sairá, madrugada alta, com a roupa colada ao corpo. Pena que nenhum de nós estivesse verdadeiramente virado para o Jamaica nessa noite. Ainda assim, e com a pista acanhada a rebentar pelas costuras, demos o nosso melhor. Mesmo quando alguém sem noção, como a mulher farta, uma criatura digna de Botero, encoxa libidinosamente à minha frente com um tipo qualquer. Das duas, uma: ou recuo e me reduzo à minha insignificância; ou peço licença e pergunto se posso fazer uma participação especial. Mas ai, a minha amiga, que tinha estado calada até então, aproxima-se e segreda-me ao ouvido:
- Estou a ver ali no meio o futuro pai dos meus filhos!
- Cadê?
- Ali, aquele de cabelinho todo despenteado... (detalhe: o seu ideal de cabelo num homem é algo à imagem do vocalista dos Beirut...)
Estico o pescoço e finjo achá-lo no meio da multidão - "Aham, estou ver..." é o melhor que consigo dizer -, mas quem me pode levar mal se Tainted Love é emendado com Enola Gay. Vou dançar, nem que para isso tenha de abrir espaço a minha volta à cotovelada.
Take 4
Já passa das cinco. A porta não tem descanso e cada centímetro livre na pista é avidamente disputado. Para piorar, há ainda quem esteja convencido que certas coreografias ensaiadas ao espelho são para ser mostradas em público... O mais sensato seria bater em retirada, mas ninguém parece querer ser o primeiro a dar parte de fraco. Ligo o piloto automático e seja o que Deus quiser. Detenho-me nela, a minha amiga, e acho-a murcha, espremida a um canto. Mais adiante, como que por milagre, abre-se uma pequena clareira. Duas miúdas beijam-se sofregamente, como se não houvesse amanhã, indiferentes aos urros dos machos exultantes à volta que, de repente, já não estão mais no Jamaica, mas sim à volta de um ringue, onde mulheres seminuas chafurdam na lama. Quando Prince sucede a David Bowie, quase acredito, por segundos, que elas vão a vias de facto ali mesmo... Entre os meus, é ela, a amiga murcha, que entrega os pontos. Aliviado, trato de sair dali para fora. Preciso de ar. E de espaço. O dia está a clarear. Antes de a despachar num táxi, ela ainda me diz:
- Ah, eu bem o vi a olhar para mim, mas ele não veio ter comigo; também não havia de ser eu a ir ter com ele...
Penso, mas não lhe digo, que isto de ser ou não ser uma mulher moderna traz água no bico. Para mim, felizmente, tudo é mais fácil (e óbvio): basta-me a ideia de que tenho à minha espera, ainda que vazia, uma cama. Uma cama de lençóis esticados onde não vejo a hora de me esparramar.