30.6.08

O síndroma da cama vazia


Soy un perdedor
Im a loser baby, so why dont you kill me?

(Loser, Beck)


Take 1
Sexta-feira à tarde. O termómetro marca mais de trinta graus. Deixar o trabalho em banho-maria para me escapulir com a amiga a tiracolo rumo à praia tem, de repente, aquele mesmo gostinho a travessura de quando, ainda adolescente, fazia gazeta às aulas para me enfiar numa matiné do King ou do Quarteto. Pena que tanta gente tenha a mesma falta de sentido de dever... O comboio para Cascais já sai do Cais do Sodré sem um único lugar vago. Saltamos na estação certa e caminhamos um pouco. Felizes da vida por Lisboa, com todos os seus defeitos, ainda nos proporcionar prazeres simples como este, que é o de ter várias praias a meia-hora, se tanto, de distância. Em lugar da brisa, que seria bem-vinda, o vento que se levanta varre o areal, soltando grãos de areia que fustigam a pele. Depois de lagartear ao sol, vamos à água. Está fria. Está estupidamente fria. Ela não se atreve para lá do tornozelo, eu insisto. Ela aplaude a minha bravata. Deixamo-nos ficar depois, enrolados nas toalhas, à conversa. Diz-me ela:
- Cheguei à conclusão que nós, mulheres, na ânsia de querermos ser modernas, muitas vezes não conseguimos mais do que ser modernosas. Ficamos a tentar provar aos homens que também somos capazes de ser desprendidas, que podemos encarar o sexo da mesma forma que eles, mas, a verdade é que não somos assim e não temos de o ser. Estamo-nos a violentar! Temos de deixar de ter vergonha e dizer que aquilo não nos basta e que queremos mais.
Confesso que não a levei muito a sério. Não por discordar; mas por achar que, no fundo, aquilo era mais para se justificar do que para seguir à risca. Talvez por isso, ou porque os homens - mesmo os que se dizem capazes de ouvir uma mulher - raramente desviam os olhos do que fica para lá do seu umbigo, enquanto ela falava eu estava mais entretido em comprovar os efeitos nefastos da água gelada na anatomia masculina... Futilidade? Com certeza, mas quem nos pode levar a mal se até mesmo os Beckham desta vida não gostam de ficar mal no retrato quando se exibem em público em trajes menores?!

Take 2
O final de tarde promete. Está-se bem na praia, mas temos sede. Fome também. Recolhemos a trouxa e assentamos arraiais na "nossa" esplanada preferida desde outro dia. Bem de frente para o mar. Enquanto esperamos pelo pedido, ela saca de um livro de Machado de Assis e dá-me a ler a dedicatória que um amigo lhe deixou. Palavras bem articuladas. Palavras de quem a conhece do direito e do avesso. Não lhe faltam homens amorosos na sua vida. Faltam-lhe, quiçá, homens que ela não tenha pressa em amar... Claro que guardo isso para mim.
Primeiro trazem o sumo de maracujá - gelado de fazer estalar a língua, como gosto. Depois trazem a tosta de frango. Reparo que o pão vem cortado em forma de coração. O que aconteceu às velhas e tradicionais tostas em pão quadrado? Há uns bons anos, uma colega minha de universidade perguntou-me se era romântico, ao que lhe respondi, com a ironia possível dos vinte anos, "tenho dias...". Pois tostas em forma de coração continuam a não me comover. Lamento. Mas isso sou eu, um gajo a quem, ainda há semanas, acusaram de, no que toca a manifestações de carinho, "ser de uma frieza quase cirúrgica"... Bom, por mais que isso "faça parte do meu show", a prova de que no meu peito desafinado também bate um coração é que não pude deixar de me sentir incomodado quando, a meio da minha tosta, ela se saiu com o seguinte desabafo:
- Decidi que não vou mais responder ao 'ser humano'... Se ele me mandar e-mail, se ele me procurar no MSN, não vou responder... Nem vou atender o telefone! Isto se ele ligar, o que eu duvido! Mas se ligar, não vou atender também... Bom, talvez atenda, mas só se ele ligar mais de uma vez...
'Ser humano' foi o codinome que ela arranjou para não ter de dar nome aos bois; neste caso um marmelo que ela, por mais que esteja à frente do seu nariz a canalhice (e cobardia, caramba como nós, homens, podemos ser cobardes na hora de sair de cena!), não consegue descartar de vez. E isso aflige-me. Aflige-me que ela, uma mulher atraente, rápida no gatilho e independente, esteja há dois meses sem namorar - um namoro que, diga-se de passagem, durou apenas três semanas - e já acuse o peso (o vazio?) da solidão.

Take 3
Vou a casa tomar banho, trocar de roupa e comer qualquer coisa rápida antes de voltar a sair. Sexta à noite. Encontro marcado no Bairro [Alto] para abrir as hostilidades. Levam-me duas cervejas de avanço. Apetece-nos dançar. A mim apetece-me, pelo menos. Vamos para a Bica. As ladeiras a pique, que ainda há dias mal continham a enxurrada de gente, estão agora mais desafogadas, mas ainda assim, a parca calçada em socalcos está semeada de grupos à conversa. Apostamos no Bicaense, mas a pista está às moscas. Não ficamos e continuamos a descer até ao Lounge. Assumidamente retro, o Lounge está composto e aposta num som à la Pulp Fiction. Mais uma cerveja, mais um brinde a coisa nenhuma. Dançamos. Até que alguém olha para o relógio. Já começam a ser horas de descer aos infernos. Tóquio, Music Box ou Jamaica? Como elas não pagam, são elas que entram primeiro para tirar o pulso às casas. Hesitam, mas, sem grande convicção, lá se decidem pelo Jamaica. Ao contrário daquele bar que passava na televisão, onde toda a gente sabia o nome de toda a gente e onde todos metiam o bedelho na vida uns dos outros, no Jamaica a familiaridade não chega a tanto, mas é o tipo do lugar, desprovido de qualquer graça natural, onde se canta em uníssono a música dos anos 80 que deixou saudades - incluindo a mais foleira; sobretudo a mais foleira - e se tem a garantia de que se sairá, madrugada alta, com a roupa colada ao corpo. Pena que nenhum de nós estivesse verdadeiramente virado para o Jamaica nessa noite. Ainda assim, e com a pista acanhada a rebentar pelas costuras, demos o nosso melhor. Mesmo quando alguém sem noção, como a mulher farta, uma criatura digna de Botero, encoxa libidinosamente à minha frente com um tipo qualquer. Das duas, uma: ou recuo e me reduzo à minha insignificância; ou peço licença e pergunto se posso fazer uma participação especial. Mas ai, a minha amiga, que tinha estado calada até então, aproxima-se e segreda-me ao ouvido:
- Estou a ver ali no meio o futuro pai dos meus filhos!
- Cadê?
- Ali, aquele de cabelinho todo despenteado... (detalhe: o seu ideal de cabelo num homem é algo à imagem do vocalista dos Beirut...)
Estico o pescoço e finjo achá-lo no meio da multidão - "Aham, estou ver..." é o melhor que consigo dizer -, mas quem me pode levar mal se Tainted Love é emendado com Enola Gay. Vou dançar, nem que para isso tenha de abrir espaço a minha volta à cotovelada.

Take 4

Já passa das cinco. A porta não tem descanso e cada centímetro livre na pista é avidamente disputado. Para piorar, há ainda quem esteja convencido que certas coreografias ensaiadas ao espelho são para ser mostradas em público... O mais sensato seria bater em retirada, mas ninguém parece querer ser o primeiro a dar parte de fraco. Ligo o piloto automático e seja o que Deus quiser. Detenho-me nela, a minha amiga, e acho-a murcha, espremida a um canto. Mais adiante, como que por milagre, abre-se uma pequena clareira. Duas miúdas beijam-se sofregamente, como se não houvesse amanhã, indiferentes aos urros dos machos exultantes à volta que, de repente, já não estão mais no Jamaica, mas sim à volta de um ringue, onde mulheres seminuas chafurdam na lama. Quando Prince sucede a David Bowie, quase acredito, por segundos, que elas vão a vias de facto ali mesmo... Entre os meus, é ela, a amiga murcha, que entrega os pontos. Aliviado, trato de sair dali para fora. Preciso de ar. E de espaço. O dia está a clarear. Antes de a despachar num táxi, ela ainda me diz:
- Ah, eu bem o vi a olhar para mim, mas ele não veio ter comigo; também não havia de ser eu a ir ter com ele...
Penso, mas não lhe digo, que isto de ser ou não ser uma mulher moderna traz água no bico. Para mim, felizmente, tudo é mais fácil (e óbvio): basta-me a ideia de que tenho à minha espera, ainda que vazia, uma cama. Uma cama de lençóis esticados onde não vejo a hora de me esparramar.

24.6.08

O casting


If I was young, I'd flee this town
I'd bury my dreams underground
As did I, we drink to die, we drink tonight

(Elephant Gun, Beirut
)


Não tenham medo, sintam-se à vontade para exagerar na mise-en-scène, pois dificilmente vão errar a mão. Este post pede uma música burlesca, maquilhagem pesada e mãos cheias de acessórios pirosos. O enredo não chega a ser almodovariano, mas deixa qualquer novela mexicana a esvair-se de raiva.
Façam género e gritem “Tirem-me deste filme”, que eu não vos levo a sério... Afinal, quem, no seu perfeito juízo, quer de facto sair a meio quando o melhor da festa ainda nem aconteceu? Sinto alguma estranheza no vosso olhar... mas também eu, quando me ponho a olhar em redor, me interrogo em que momento, sem que eu me tenha dado conta, semelhante galeria de personagens aterrou no meu quintal?! Serei eu um projecto de "chico de Almodóvar" e ninguém teve a decência de me avisar que a câmara indiscreta já começou a rodar?
Mas eles existem, não são invenção da minha imaginação alucinada e, ou muito me engano, ninguém faltou à chamada. Tem o ex renascido das cinzas, a quem seja talvez o caso de perguntar "tudo isso é saudade" ou "deu vontade de ir à desforra"?; tem a amiga querida, mas muito carente, que cismou em fazer de mim o seu livro de auto-ajuda privado; tem o ex-namorado dela, o “todo bom”, que "regressou" gay e, diz a lenda, foi visto, não se sabe bem por quem, a rebolar de gogo boy, com tanga tigrada e tudo, numa festa da louca Ibiza; tem a senhoria megera, a que não se pode dar confiança, que fala mal nas costas e que oferece empadão ao domingo; tem as vizinhas de porta da amiga, que, como os gatos, só atacam ao cair da noite; tem a melhor amiga da amiga, beijada uma noite, traída na seguinte por um gajo que se acha engraçado; tem a melhor amiga da amiga da amiga, um verdadeiro coirão que também tem a mania que é engraçada; tem o diplomata novinho, avistado no Jamaica a beber sozinho, que não sabe beijar e ainda diz, a tropeçar no sotaque, “quero fazer amor contigo”; tem o “playboy de trazer por casa”, mais para canalha do que para cavalheiro com as amigas que se julgam muito liberadas e atentas à "cantiga do bandido", que fala, fala, mas na hora do bem bom não dá uma; tem as gémeas anãs, que, quando não estão a aviar copos no bar ou a despachar o homem do talho em cima da mesa da cozinha ao melhor estilo d'O carteiro toca sempre duas vezes, fornecem coca aos marmanjos que, pelos vistos, não se cansam do cliché "sou gay, sou bonito, tenho dinheiro e uma queca sem cheirar não é queca. E que se fodam os chatos"; tem o espanhol com suspensórios, colega do amigo da amiga, mais o seu "clube do Bolinha" que, tenho cá para mim, só foram ao Majong porque parecia mal ir directo à rua de baixo, a tal onde ficam muito juntinhos os rapazes que, como eles, também gostam de rapazes; tem o amigo colorido da amiga que vem de Londres em Julho; tem a amiga com o casamento em crise e doida para cair na má vida, porque é isso que o marido dela já faz há tempo; tem o “bom filho, menino da vó”, que já mora sozinho mas ainda vai comer todos os dias à casa da mãezinha, só à espera de alguém que o arrebate, o despenteie, o ajude a escolher as cuecas, o atire na parede e lhe chame "lagartixa"… e eu, metido no meio disto tudo, sem saber de cor as minhas falas e se é ou não suposto tirar a roupa.
Será castigo porque quis fazer a linha "tou nem ai" e não atirei a moedinha da praxe ao santo?

17.6.08

Não façam género

David Bowie

Girls who are boys
Who like boys to be girls
Who do boys like they're girls
Who do girls like they're boys
Always should be someone you really love
(Girls & Boys, Blur)


O portal português www.iol.pt fez eco da seguinte notícia:


«As semelhanças são enormes, segundo um estudo divulgado pela revista da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos (PNAS). O cérebro de um homem gay é mais parecido com o de uma mulher heterossexual do que com o de um homem heterossexual.

Os dados foram apresentados pela equipa de neuro-cientistas liderada por Ivanka Savic, do Instituto Karolinska, da Suécia. Será a prova mais sólida jamais apresentada de que a sexualidade não é uma opção, mas uma característica biológica, dado que a ressonância magnética demonstrou que o tamanho e a forma do cérebro variam de acordo com a orientação sexual.

O cérebro de um homem gay é muito semelhante ao de uma mulher heterossexual, apresentando os dois hemisférios mais ou menos do mesmo tamanho. O de uma lésbica, por outro lado, assemelha-se ao homem heterossexual, dado que tem o lado direito um pouco maior do que o esquerdo. A investigadora optou por estudar parâmetros fixos, como o tamanho e a forma do cérebro, que se mantêm os mesmos desde o nascimento.

A equipa também analisou o fluxo de sangue na amígdala, a área do cérebro que controla os aspectos emocionais, o humor e a agressividade. E, também aqui, o padrão masculino homossexual correspondeu ao feminino heterossexual e vice-versa. Foram estudadas 90 pessoas (25 heterossexuais e 20 gays de cada um dos sexos).»

Por sua vez, este estudo mereceu os seguintes três comentários de internautas:

Na minha idade estes estudos baralham-me! 2008-06-16 / 22:48 por: Astonished
Não tanto pelo fluxo de sangue na amígdala que disso toda a gente sabe, mas sobretudo por terem sido analisados cérebros, já que o busilis está muito mais abaixo! E até me atrapalha ficar a saber que as minhas experiências com mulheres heterossexuais me possam um dia vir a comprometer já que muito semelhantes a outras que eu não tive e de que posso vir a ser acusado!

Tal como Deus diz na Bíblia
2008-06-16 / 22:36 por: Maria Jacinta
Trata-se de uma doença e como o próprio artigo diz, não muda durante a vida da pessoa a não ser devido à intervenção directa do Espírito Santo. Estas ciências sempre atrasadas em relação ao grande livro. Deus é omnisciente. As respostas a todos os problemas e questões estão na Bíblia. Para quê gastar dinheiro com isto?

CLARÍSSIMO
2008-06-16 / 22:27 por: TOPATUDO
TINHAM DE TER UM CÉREBRO MAIS PEQUENO, DE ATRASADOS MENTAIS.

Os comentários nem me merecem considerações. Valem o que valem. Já este tipo de estudos deixa-me algo inquieto e muito desconfiado quanto aos seus verdadeiros propósitos...
Digo desde já que não me choca o facto de se tentar estabelecer uma maior afinidade entre os homens gay e as mulheres hetero - ou entre as lésbicas e os homens hetero -, porque até acho que, em certa medida, esse paralelo não é de todo descabido; já considero, todavia, muito forçado - para não dizer simplista - o facto de se querer fazer disso um postulado científico para, no fundo, repetir a ideia de que os gays, homens e mulheres, são um desvio à "normalidade". Com uma diferença: antes eram apontadas razões sociológicas para esse desvio, hoje procuram-se, supostamente munidos das melhores intenções, explicações genéticas e biológicas. Serão os gays um "acidente" genético?
Lamento, mas não consigo ver nada de apaziguador nestas "conclusões". Porque para mim elas mais não fazem do que perpetuar um erro grosseiro, que é o de se partir do pressuposto de que todos os homens gay são necessariamente efeminados - logo todas as lésbicas são também necessariamente masculinas. E não é assim. Dentro da homossexualidade há muitas cambiantes e variações, por mais que desse muito jeito poder arrumar todos na mesma prateleira!
Analisada a questão, fica-me o amargo de boca de perceber que a ciência, como a sociedade, continua a ter muita dificuldade em aceitar algo que, em última instância, pode ser bem mais simples do que se quer crer: um homem deseja e ama outro homem sem o deixar de ser - tal como uma mulher deseja e ama outra mulher sem o deixar de ser. O que há de tão complicado nisto?

11.6.08

Com as calças na mão


Sexy boy, sexy boy ...
Où sont tes héros aux corps d'athlètes
Où sont tes idoles mal rasées, bien habillées
Sexy boy, sexy boy ...
Dans leurs yeux des dollars
Dans leurs sourires des diamants
Moi aussi un jour je serai beau comme un Dieu
Sexy boy, sexy boy ...

(Sexy Boy, Air)


Se for apanhado com as calças na mão, ao menos que esteja a usar um par de cuecas Aussiebum. Como não é o tipo de presente que se peça de aniversário à mãe ou à tia, eu mesmo tratei do assunto: fui direito ao site e fiz a festa. Ainda acho que a marca australiana deveria fazer uma forte campanha publicitária junto dos familiares que têm por (mau) hábito oferecer cuecas e meias ― sem um pingo de imaginação ― pelo Natal…

Enfim, para compensar tamanho arremesso de futilidade, aproveito os feriados e a chegada do Verão ― que já tardava! ― para colocar a leitura em dia. De uma penada só, devoro Hermann Hesse, Ian McEwan e José Eduardo Agualusa. Diz Siddhartha:
«Podemos partilhar conhecimentos, mas não a sabedoria. Podemos encontrá-la, podemos vivê-la, podemos ganhar importância com ela, podemos fazer maravilhas com ela, mas não podemos comunicá-la e ensiná-la.»

Partilhar conhecimentos é bom. Podemos sempre aprender alguma coisa com os erros e acertos alheios. Mas há limites para a partilha. Em vésperas de Santo António, em vez de ir desabafar com o santo casamenteiro, a minha amiga do post anterior, a confirmar os meus receios, cismou em fazer de mim seu cúmplice à força. Assim, antes de nos lançarmos na orgia de sangria, sardinha assada ― que eu dispenso! ― e manjerico, vou ter de passar pela dura provação de a ouvir contar-me, com detalhe e minúcia, o que se passou entre ela e o “motoqueiro galanteador”... As mulheres, mesmo as que se dizem modernas e muito à frente, são vítimas delas mesmas. Passo a explicar. No início, armam-se em fortes, dão trela a marmanjos que, está na cara, só as querem apanhar entre os lençóis, mas insistem... Argumentam elas que estão a dominar as regras do jogo e, como tal, são perfeitamente capazes de encarar o sexo como algo descartável. Siga para bingo.

O pior vem depois. Podem até não dar parte de fracas na altura, mas assim que deixam a toca do lobo e ficam a remoer no que ouviram da boca do gabiru ― o clássico “não tenho vocação para o compromisso nem para a fidelidade”, metido desajeitadamente entre uma garfada e um gole de vinho, e que vale como o seguinte aviso de navegação: não te iludas que o jantar a dois é mesmo só um pretexto porque parecia mal irmos para a cama a seco ―, mal disfarçam a falsa resignação de quem “foi comida e não gostou” . E como as amigas estão longe, e os seus sentimentos para comigo são algo ambíguos, sobrou para mim fazer as vezes de ombro amigo. Deve ser castigo… Só pode ser castigo. É nestas alturas que gostaria de ser apenas, e só, um sexy boy como aqueles rapazes que vêm nos catálogos da Aussiebum... Mostram o que está à vista e a mais não são obrigados.

4.6.08

Trintões


You made me smile today
You spoke with many voices
We travelled miles today
Shared expressions voiceless

(Numb, Sia)


Em vésperas de somar mais um aniversário* ― o que é sempre motivo de reflexão, sobretudo desde que entrei na fase “Opá, mais um?! Mas tem MESMO de ser? Estava tão bem assim… não quero brincar mais a isto! ―, tenho constatado nas últimas semanas que a vida moderna, entre outras benesses, abriu novas possibilidades aos trintões como eu. Para começar, hoje é-nos permitido, se assim o entendermos, continuar a fazer aquilo que nos dá na real gana sem medo de estarmos a ser “ridículos” e/ou de sermos taxados com piropos do tipo “lá estão eles a fingir que ainda têm vinte anos”! Não temos de fingir. Não temos sequer de gostar das mesmas coisas que gostávamos aos vinte anos, mas também não temos de nos sentir mal se, por acaso, ainda nos apetece fazer muitas das coisas que fazíamos aos vinte.

Os trinta trazem-nos cabelos brancos e um metabolismo mais lento – a alguns trazem ainda mulher, marido, sogra, filhos, cães, um empréstimo para pagar nos próximos 30 ou 40 anos, um Plano Poupança Reforma e, com alguma sorte ou azar, um ex ou uma ex que nos vão infernizar um bom tempo―, mas estão muito longe de ser o fim da linha em matéria de diversão ― com uma vantagem comparativa nada desprezível se tudo correr pelo melhor: temos mais dinheiro no bolso para estourar nas coisas boas desta vida (e são tantas!).

Confesso que, há uns anos, vi a coisa mal parada quando, de repente, dei por mim rodeado de amigos já casados e a pensar em criancinhas. Mas, curiosamente, se a dada altura senti maior dificuldade em arranjar companhia para sair e beber uns copos, a culpa foi mais minha, que me afastei e me "ausentei" tantas vezes a pretexto do trabalho, do que deles. O certo é que agora, olho à minha volta, e não me faltam amigos que continuam solteiros como eu, que voltaram a ser solteiros ou que ainda não tiveram sequer tempo para deixar de o ser.

E é assim que, aos trinta e poucos, aos trinta e picos, ou aos trinta e muitos, continuamos a fazer jantaradas, a correr vários bares numa só noite, a gastar 60 euros para ir ver a Madonna ou a ponderar a possibilidade de acordar de madrugada nos feriados para aguentarmos a pedalada das sessões do Europa, com Dj’s convidados, entre as 6 e as 10 da matina.

O reverso de ser trintão e de continuar disponível no mercado? Existe, óbvio que existe. Por exemplo, a amizade sincera entre homens e mulheres na casa dos trinta não é uma utopia, mas, admito, presta-se a alguns mal-entendidos. Especialmente quando, como acontece comigo, as cartas não estão todas em cima da mesa. Não nos iludamos: a maioria dos trintões que permanece solteira não faz disso um drama ― e até gosta, já que ir para a cama deixou de ser um problema ―, mas isso não quer de todo dizer que se tenha descartado a meta de encontrar um(a) companheiro(a) estável. As mulheres trintonas, mais do que os homens, pagam uma factura pesada ― sobretudo as que dão ouvido ao tic-tac impiedoso do seu relógio biológico ― pela sua emancipação social e sexual. E ai chegamos ao clássico e muito batido pregão: os homens livres depois dos trinta ou são mulherengos ― logo fogem do compromisso como o diabo foge da cruz ―, ou são gays ― logo se não forem aliados, ao menos que não sejam adversários.

De fora da equação matemática ficam os que, como eu, se encontram no limbo. Tenho uma relação bastante cúmplice com as minhas amigas, pelo que não me importo de fazer as vezes de confidente, mas, por outro lado, nunca permiti que me deixassem de ver como Homem, porque, independente de ser ou não gay, acho muito mais interessante quando existe sempre alguma tensão sexual.

Sei que muitos encaram isto como uma incapacidade minha para me aceitar como realmente sou ou até, em certa medida, como uma demonstração de desonestidade para com os outros e para comigo. Não é, nem nunca foi, essa a intenção. Mas boas intenções não chegam e, assumo, a minha postura dúbia coloca-me, agora mais do que antes, frequentemente naquilo a que os brasileiros chamam de “saia justa”. Neste preciso momento, tenho uma amiga, recém-chegada à casa dos trinta, que está, digamos, numa fase confusa a meu respeito... Olha para mim, vê o homem gentil que lhe abre ou fecha a porta do táxi, o tipo divertido com quem vai para os copos mas com quem também pode conversar sobre praticamente tudo, e pergunta-se: mas se estamos os dois livres e temos uma boa química, por que raio não se chega ele à frente? Ai a dúvida instala-se… E, em caso de dúvida, o que faz uma mulher? Eu arrisco dizer que joga em duas frentes e ora tenta fazer ciúmes para provocar uma reacção, ora parte do princípio – que muitos querem tornar universal ― de que um gay como amigo vale muito mais do que uma amiga. Culpa dos filmes, já se vê, que deram vida a esse monstro do “seria o homem ideal, mas como é gay ficou o meu melhor amigo”.

Nesta lógica distorcida, quem fica em maus lençóis sou eu, está-se mesmo a ver, que agora tão depressa sou picado pela entrada em cena de um “motoqueiro galanteador”, como sou intimado a pronunciar-me sobre as investidas dele e o que poderão querer dizer no manual masculino. E só me apetece responder: não me faças ciúmes, que não vale de todo a pena, mas não te atrevas, por outro lado, a querer fazer de mim o teu Will ou o teu Rupert Everett de trazer por casa, que nem tu és a Grace ou a Madonna tampouco. Sim, estou mais cínico. A boa ou a má notícia é que isto só tende a piorar com a idade.

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*Agradeço muito os parabéns que, entretanto, tenho recebido, mas aproveito para esclarecer que ainda faltam uns dias para o meu aniversário. Apenas antecipei o assunto.

26.5.08

A ervilha


In cards and flowers on your window,
Your friends all plead for you to stay.
Sometimes beginnings aren't so simple.
Sometimes goodbye's the only way.

(Shadow of the Day, Linkin Park)


Momento flashback: antestreia do filme Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal. Enquanto P. vai ao carro buscar os óculos de que se esqueceu, eu e F. tomamos vez na fila que se junta à porta da sala, pois não há lugares marcados. F., a grande responsável por eu ter voltado à vida boémia, põe-me a par das últimas. Não faço por mal, até porque se há alguém que gosto de ouvir é ela, mas a minha atenção é desviada para outro lado. À nossa frente, três amigos destoam do resto. Não que façam por isso ― são até bastante discretos, quer na postura, quer na indumentária ―, mas o meu radar deu sinal de alerta. E o que pode ter sido imperceptível para os demais, para mim foi suficientemente esclarecedor. Quando dou por mim, já estou a fazer uma coisa que detesto se for eu o visado: comecei a medi-los de alto a baixo. Acho até que um deles, o mais interessante por sinal, se apercebeu a dada altura. Disfarço. Para mais, não era a hora, tão pouco o local adequado. Termina o momento flashback.

Sábado à tarde. F. manda-me uma mensagem a perguntar se quero jantar com ela e o seu amigo A., que está de passagem por Lisboa. Insiste há dias para que eu conheça A., mas pelas estórias que me conta, sem esconder o entusiasmo e a admiração, eu tenho ficado de pé atrás… Não me agrada também que seja sempre ele a querer definir os horários e o lugar de encontro. Prefiro por isso deixá-los ir jantar primeiro e juntar-me a eles mais tarde.

Abrir parêntesis
A. foi namorado de F. quando andavam na universidade, mas conhecem-se desde que eram adolescentes e viviam os dois no Guarujá, litoral de São Paulo. Agora F. mudou-se para Lisboa e A. vive em Londres.
Fechar parêntesis

Chego ao restaurante já perto da meia-noite, acabaram as sobremesas, mas ainda decidem com que bebida vão encerrar o repasto. F., noto mal puxo uma cadeira para me sentar ao seu lado, está meio que perdida na mesa, onde, além de A., estão ainda mais três homens. Nenhum deles, para além de A., fala português. Bem sei que o inglês, apesar de todos os cursos que fez, não é o ponto forte de F., mas não me cheira que seja isso a incomodá-la. Reparo melhor no grupo. A., como imaginava, é o centro da mesa, só que não se comporta como o mulherengo “pintado” por F. Aliás, bastam-me uns minutos ali para perceber que F, apesar de já devidamente informada por amigos comuns do facto ― como me viria a confidenciar mais tarde ―, não estava era preparada para ver o seu ex-namorado, o mesmo que se lhe declarava timidamente desde os 15 anos, aos beijos com o seu namorado francês e cheio de trejeitos dengosos para com os restantes amigos. A., justiça lhe seja feita, além de bonito e elegante, é o tipo que só passa por gay quando assim o entende. Já os seus amigos e namorado são aquilo que podemos chamar de estereótipo: bonitos, jovens (um deles nem tanto, pois desconfio que beira os 50, mas em plena forma), bem sucedidos na indústria da moda e sem pudor de usar roupa totalmente justa aos corpos enxutos. Tiro-lhes o chapéu por não se preocuparem sequer em manter as aparências num dos restaurantes mais caros e chiques de Lisboa, mas sei também que muita daquela confiança em querer fazer com que o mundo os engula, além de deliberada, é fruto de um elixir poderoso chamado dinheiro. Acho graça também quando, num momento em F. se retira da mesa, A. começa a beijar o namorado ― para gáudio dos dois amigos ― para testar a minha reacção.

Vou com F. para o Bairro [Alto]. A. e os amigos ficam de nos encontrar lá. Claro que A. faz questão de sugerir o bar… Frequento o Bairro há mais de 15 anos, mas ainda assim continuo a perder-me nas suas vielas, já A., claro, chega tarde, mas não dá mostras de ter errado o caminho. Mal chega, pede uma rodada de caipirinhas para todos e, à parte, encomenda, suspeito, haxixe para ele e para o resto da pandilha. Quando os deixamos, já o bar é deles, mas, uma vez mais, eu e F. saímos à frente. P. espera-nos para irmos juntos até ao Lux.

A. e companhia ― juntaram-se, entretanto, mais dois gays ao grupo ― chegam já nós vamos no fim do primeiro copo. Foi parado no caminho pela polícia, mas, como sacana sortudo que é, “apenas” acusou 48 mg de álcool no sangue contra os 49 permitidos por lei! Apesar de o Lux ser, cada vez mais, gay friendly, o nosso grupo começa, aos poucos, a atrair alguns “satélites”, que ficam na órbita a ver onde param as modas. Pelo canto do olho, observo, entre o divertido e o desconcertado, que, à excepção de P. e F., somos todos praticamente da mesma altura, o que só serve para acentuar a ideia de “farinha do mesmo saco”. Claro que, estando os rapazes mais ou menos entretidos uns com os outros, tinha de sobrar para mim. Estou eu a dançar muito sossegado ― o sossegado é relativo, admito, mas adiante ― quando começo a sentir a presença incómoda de um tipo quase colado a mim. Se há coisa que me deixa “P” da vida é fazerem-me isto quando estou a dançar na minha. Chego-me mais a F., que sorri divertida, mas nem mesmo assim o tipo descola… Só penso: com tanto gajo bom aqui para escolher, este caramelo logo tinha de vir tentar a sua sorte comigo!!! Com o tempo, ele lá acaba por perceber e vai pescar ao largo. Não passam nem cinco minutos e já está de conversa com um outro na pista. Quando este se vira, a sua cara não me é estranha… Puxo pela memória e nem quero acreditar na coincidência: é um dos tipos que estava no cinema! Qual ovo qual quê, o mundo é uma ervilha!

19.5.08

A febre de sábado à noite


You could be from Venus
I could be from Mars
We would be together
Lovers forever
Care for each other

(Venus, Air)


Sábado. Princípio de noite às portas do Bairro [Alto]. Corre uma aragem fria, mas a lua plena, reparo agora, está pregada como uma jóia de prata no vestido de veludo preto sem mácula. Antes de começarmos a beber, precisamos comer qualquer coisa rápida. Àquela hora, os restaurantes e tascas estão todos a abarrotar, mais a mais, não é bem isso que nos apetece; sobretudo quando, ainda há dias, matámos as saudades dos filetes de polvo do Sinal Vermelho.

Depois de uma incursão falhada a uma das capelas do costume, assentamos arraiais no Vertigo. Gosto deste café ― e da sua clarabóia de vitrais, da mesa junto à janela, a minha preferida, das velas acesas dia e noite e de poder matar a fome, sem me preocupar se o horário é próprio ou não, com comidinhas simples e saborosas. Sinto-me bem ali, mas, depois do café, decidimos mudar de poiso. Ala que se faz tarde. Voltamos a cruzar a Brasileira, mas junto à Praça do Camões atalhamos pela Atalaia. Ainda espreito o Mexido, na Rua da Trombeta, mas é cedo e está às moscas. Na esquina com a Fiéis de Deus, ancoramos junto ao balcão do Majhong, meu porto conhecido de há muitos anos, mesmo que leve décadas a passar ao largo. Abrimos as hostilidades com Morangoskas e gin tónico. A conversa anima, junta-se mais um a nós e, a dada altura, já nem prestamos mais atenção se vagam ou não lugares sentados. Permanecemos de pé, a dançar a versão mais foleira de Tainted Love e a brindar ao que a vida tem de imprevisível e fortuito. De vez em quando, desligo da conversa e deixo-me hipnotizar, momentaneamente, pelos candeeiros verdes que pendem do tecto como alforrecas (águas-vivas).

Sacamos dos telemóveis aos primeiros sinais de mensagem. Marca-se novo ponto de encontro. Uma da manhã. Desaguam aos magotes nas ruas do Bairro e deixam-se ficar ao sabor das marés, mas nós nadamos contra a corrente até atingirmos os rápidos da Calçada do Combro. Sinto-me, cada vez mais, numa noite de resgate do que já fui, ainda que nem todas as portas me sejam familiares. Mas aquela, quase em São Bento, não demoro a reconhecer. No Incógnito fui feliz, mas era outra época, outras pessoas.

Organizamos as tropas à porta. Quando entro, num primeiro impacto, estranho as cores, mas a geografia da pista, afundada mais abaixo, é-me familiar. Por esta altura já emborquei dois gin tónicos e vou a caminho do terceiro. A noite é uma criança. Aos poucos, a pista vazia ganha vida, mas quando eu e mais alguns estávamos a começar a entrar no espírito, alguém se lembra de que aquilo já deu o que tinha a dar e que se impõe nova mudança. Há um náufrago a lamentar.

Distribuídos por vários táxis, rumamos, desta feita, para as vielas manhosas do Cais do Sodré, onde as putas e os marinheiros de água doce cederam, faz tempo, a vez aos que se dizem alternativos e avessos a lugares da moda. Agora, como antes, posso até parecer uma personagem deslocada naquele cenário de opereta bufa, mas sou capaz de desfiar o meu rosário de boas lembranças em praticamente cada um daqueles antros apertados e escuros. Infelizmente, o Tóquio está a rebentar pelas costuras, ainda é cedo para ir ao Jamaica ou ao Europa, por isso, meio que a contra-gosto, vou bater com os costados no Music Box. Lá dentro prefiro o vodka com energético ao charro (baseado), enrolado às escondidas, que vai passando de mão em mão. Africa is the future - pode-se ler no telão, mas, a partir de uma certa altura, a minha tolerância para com o som afro de batida tecno está quase a zero. Felizmente, lá pelas quatro e meia da manhã não sou o único a pensar a mesma coisa. Uns ficam, outros, como eu, batem em retirada e despedem-se à francesa.

Não falta muito para as cinco da matina, mas a fila para entrar no Lux não dá mostras de abrandar. Como sabemos o que a casa gasta não desesperamos. Dois suecos patuscos metem conversa, o que ajuda ainda mais a passar o tempo. Uma vez lá dentro, passamos uma revista rápida aos três ambientes da casa, mas não perdemos tempo a ir reclamar o que é nosso a um dos balcões. Por esta altura, já perdi a conta ao que bebi, mas como o corpo continua a não acusar o toque, não vejo por que parar. A desproporção entre homens e mulheres salta à vista desarmada, com a clara predominância dos primeiros, mas ninguém parece importar-se muito. Eu muito menos.

A nossa propensão para morcegos, leva-nos a preferir o som da pista no porão. Às seis e meia, os meus pés dão o primeiro aviso de que não tardo a virar abóbora, mas continuamos a dançar ― e a beber ― até quase ao fecho. Saímos para a rua já passa das sete. Os vampiros mais batidos nestas andanças trazem postos os óculos escuros, evitando assim cegar com os primeiros, e cruéis, raios de claridade. Depressa desistimos da ideia peregrina de ir tomar o pequeno-almoço. Aterro na minha cama pouco depois das oito. Dormirei nem quatro horas seguidas. Porque hoje como ontem, por mais que os anos tenham passado e eu seja um homem feito há muito, uma noitada não é desculpa para não estar presente à mesa, com os meus pais, no almoço de domingo.

12.5.08

A imagem

Fotografia de Zsolt Szigetvàry, Hungria

Ontem, domingo, aproveitei a tarde para cumprir um ritual que, na medida do possível, tento preservar ano após ano: fui ver a exposição da World Press, que distingue as fotografias mais marcantes, a nível mundial, em diversas categorias. Poderia falar de muitas delas, mas esta aqui marcou-me por razões que, acho, dispensam maiores explicações da minha parte; acrescento apenas um breve enquadramento para quem ainda não viu e/ou não terá oportunidade de o fazer: estes dois homens estão à espera de ser socorridos. Um deles foi atingido na cabeça por uma pedrada. O agressor, provavelmente um manifestante neonazi, fê-lo porque estes dois mesmos homens participavam na Parada de Orgulho Gay em Budapeste, que teve lugar em Julho de 2007. E eu que, ainda há um ano, me arrepiava com a ideia de tais desfiles de duvidoso gosto e não conseguia enxergar para lá das plumas e das figuras tristes, hoje olho para alguns destes homens e mulheres - sobretudo os que não perdem a dignidade nem debaixo de pedrada - e compreendo-os muito melhor.

Em rodapé desta vez, uma velha música dos Portishead, Roads, que, volta e meia, reaparece para me assombrar. Porque Ohh, can't anybody see / We've got a war to fight / Never found our way / Regardless of what they say.

6.5.08

O anzol


Ai eu já pensei mandar pintar o céu
Em tons de azul, pra ser original
Só depois notei que azul já ele é
Houve alguém que teve ideia igual

Eu não sei se hei-de fugir
Ou morder o anzol
Já não há nada de novo aqui
Debaixo do sol

(
O Anzol, Rádio Macau)


Quantos gestos banais, e até mesmo irreflectidos, não nos passariam totalmente ao lado não fosse o facto de terceiros reparem neles e com isso nos obrigarem a pensar no que acabámos de fazer quando não era de todo essa a nossa intenção?

Deixem-me explicar. Estava eu a saborear um cappuccino, a conversa e a esplanada quando, sem o mínimo desígnio obscuro, estendi a minha perna direita, servindo-me da cadeira vaga em frente como apoio. Não será o tipo de coisa que faça muito frequentemente em público, mas naquela tarde amena, depois de andar a caminhar desde cedo, apeteceu-me e fi-lo espontaneamente. O curioso é que, não fosse esse gesto e, provavelmente, os dois homens da mesa ao lado da nossa ter-me-iam passado despercebidos. Para um deles, porém, o eu ter colocado a minha perna esticada sobre uma cadeira deve ter funcionado como pretexto, pois, de repente, senti-me observado. Encarei-os por breves segundos – o suficiente para constatar que as mesas estavam muito mais próximas do que imaginara e que um dos homens de meia-idade me fintava agora sem cerimónias. Desviei o olhar e continuei a falar com o meu amigo, mas, porque tinha clara noção de que continuava a ser observado, já não fui capaz de manter a mesma posição por muito mais tempo. A dada altura, e porque os nossos olhares se voltaram a cruzar inadvertidamente, o homem aproveitou para me atirar à queima-roupa:

- Are you Brazilian? – E ficou a sorrir, como que expectante da resposta que julgava ser óbvia.

Numa cidade onde não faltam imigrantes portugueses, e por isso o português se faz ouvir um pouco por todo o lado, não deixou de me parecer uma ironia – mas ainda assim previsível - que aquele homem, que estivera claramente a matutar numa maneira de meter conversa connosco, optasse por nos atribuir uma nacionalidade que, a avaliar pelo riso matreiro, lhe despertava maiores fantasias do que nos imaginar tão portugueses como o homem do táxi ou a mulher que lhes limpa a casa.

Desfeito o equívoco, e terminada a troca de palavras de circunstância que parecia ter por único propósito saber o que estávamos a fazer na cidade, reparei que o meu amigo, à excepção de ter rosnado entre dentes “Panilas”, se havia mantido à margem durante o curto diálogo – a típica reacção de defesa dos homens hetero quando, em desvantagem ou igualdade numérica, se sentem na mira de homens gays.

Mas eu, que gosto de divagar sobre banalidades, fiquei pensativo. Primeiro sobre a nossa linguagem corporal e como ela pode, de facto, condicionar/influenciar a forma como os outros nos vêem. Segundo a questão dos estereótipos e como estes podem ser enganadores – será que devo tomar como elogio, e já agora os que são realmente brasileiros, o facto de ser confundido com um brasileiro quando isso vem associado a uma certa imagem feita de “exotismo” e “sexualidade”? Terceiro, não é a primeira vez que sou abordado por um casal gay mais velho e, muito curioso, o padrão, de certa forma, repete-se: há sempre um que toma a iniciativa de meter conversa enquanto o outro permanece silencioso, o que me deixa na dúvida se está em sintonia, e apenas é mais tímido, ou se a situação, na verdade, o incomoda, mas opta por não interferir? E o que significa a abordagem? Estão apenas a ser simpáticos? Gostam de fazer novas amizades? Ou nada disto é assim tão inocente – como eu realmente suspeito - e é apenas um subterfúgio para tentar a sorte? E se assim o for, o que os levou a arriscar? O facto de sermos dois homens adultos sozinhos numa esplanada a meio da tarde? Estender a perna é algum código que deva saber para evitar mal-entendidos futuros (okay, esta até a mim me parece estapafúrdia, mas não custa perguntar! hahahahah) ? Ou ser brasileiro – e vocês que o são, respondam-me, por favor – tornou-se efectivamente sinónimo de “gente muito disposta” no estrangeiro (estou a ser mauzinho, mas vocês percebem onde quero chegar, right)? E estariam os senhores a pensar num ménage a quantas mãos (e pernas, pois então, hahahahahaha)? - admito, esta última foi só para lançar a confusão!

Dá que pensar, ou sou eu que ando a ver muitos filmes? (não precisam responder!)

1.5.08

Apaguem as luzes, por favor, que me dói a cabeça...

Image by Oz


I hope all my days
Will be lit by your face
I hope all the years
Will hold tight our promises

I don't wanna be old and sleep alone
An empty house is not a home
I don't wanna be old and feel afraid

And if I need anything at all

I need a place
That's hidden in the deep
Where lonely angels sing you to your sleep
Though all the world is broken

I need a place
Where I can make my bed
A lover's lap where I can lay my head
Cos’ now the room is spinning
The day's beginning

(Atlantic, Keane)


Dois homens away from home. O dia vai longo - entre aviões, comboios, táxis, malas abertas. Uma nova geografia com sotaques arrevesados pelo meio. O reencontro pede uma cerveja no bar-da-esquina-onde-todos-vão. Bebemos a primeira, mas, já que estamos ali, e o final de tarde até está agradável, pedimos outra… A conversa engata. E está tão boa que, apesar do câmbio desfavorável, pedimos a terceira para a saída. O crepúsculo tarda, mas o relógio diz-nos ser hora de jantar. Mudamos de poiso. A falta de inspiração para procurar mais adiante dita um restaurante italiano de ocasião, do qual não vou nem recordar o nome mais tarde. Bebemos mais duas para o caminho. Chegados ao hotel, o alpendre do meu quarto, virado para o lago adormecido, exige, apesar da brisa fresca dessa noite, um brinde com vinho. Vazamos a primeira garrafa de tinto e não demora muito a ficarmos amigos de infância. Começam as confissões, algumas das quais serão convenientemente esquecidas na manhã seguinte. Noto que ele se controla, a muito custo, para não tropeçar na língua. Já eu estou mais preocupado em não tropeçar nos pés quando me levanto para ir mijar. Na volta, trago mais uma garrafa.

Terminamos na cama. Cada um na sua e com a respectiva ressaca por companhia. Em momento algum, mesmo quando a conversa resvalou para zonas de perigo, achei que o desfecho pudesse ser outro. Tanto para mim – tenho mais ou menos claro que não me quero envolver com colegas de trabalho -, como para ele – casado, e bem casado até onde sei ou me interessou saber -, o estímulo esteve sempre, e só, em deixar as coisas avançarem até aquele ponto crítico em que a corda fica esticada no limite da tensão. É um desafio. Um jogo em que muitos homens se exercitam sem nunca saírem da sua esfera de conforto ou sem terem de pôr em causa seja o que for. Pouco para uns. Para outros é o suficiente. No meu caso, tem sido, na maior parte das vezes, o bastante. Resta a quem o faz ter a inteligência, e a humildade, de ter sempre bem presente uma lei elementar da vida: o vazio prevalece sobre tudo aquilo que é fugaz.