11.8.08

Esperando aviões - Parte I


E o louco que ainda me resta
Só quis te levar pra festa
(
Esperando Aviões, Vander Lee)



Jeans brancos. Botas, camisa e blusão pretos. Acho que já passa das dez da noite quando me vou encontrar com eles. A Cantina do Lucas fica dentro do edifício Maleta, antigo reduto da boémia mineira, mas não os acho de imediato nas mesas do lado de fora. Toca o telefone. Aliviado, levo a mão ao bolso das calças e atendo; não me apetece nada ficar ali, especado, a revistar um por um todos os rostos até encontrar algum que me seja vagamente familiar ― claro que ser míope, e insistir em sair para a rua sem lentes, também não facilita a tarefa! São duas da manhã em Portugal, mas em casa querem saber se cheguei bem ― sim, cheguei bem.
Nisto, vejo alguém, que reconheço das fotografias, levantar-se de uma das mesas e acenar para mim. É o Ricardo. Será ele o primeiro que abraço. Ser o último a chegar ― a bem da verdade, não fui o último, já que Ludo e J. chegaram depois, mas deles falarei mais à frente ― tornou aquele momento menos óbvio do que esperava. Mas há, por mais que já tenhamos falado com aquelas pessoas antes, que já as tenhamos visto em fotos ou que até saibamos detalhes da sua vida pessoal que muita gente mais íntima desconhece, coisas que precisam de um tempo para acontecer. Todos se conheciam entre si, já tinham bebido o primeiro copo de cerveja gelada e não precisavam de articular o seu português para se fazerem entender. Eu, sabia-o desde o início, é que vim baralhar um pouco as regras do jogo e introduzir um elemento de novidade no grupo – um papel que, convenhamos, tirando uma certa timidez que ainda me deixa sem graça nos minutos iniciais, me agrada.
Assim que nos acostumámos à presença física uns dos outros ― curiosa, muito curiosa, essa coisa de termos um retrato robô pronto, que é preciso agora ajustar à pessoa que passa a estar, ao vivo e a cores, na nossa frente, do nosso lado… ―, e que eu desacelerei o meu sotaque lusitano, tudo fluiu naturalmente. E o resto do serão, na companhia do Ricardo, do Marco, do Leandro, do Ludo, de J. e de outras pessoas que se juntaram a nós, foi o que era suposto ter sido: um encontro de amigos e uma forma muito prazenteira de eu assinalar o meu regresso a Belo Horizonte.


O apartamento de Marco, onde ficaram Ricardo e Leandro, acabou por funcionar como quartel-general, onde as tropas se reuniam, em amena cavaqueira ― na verdade, as conversas eram calorosas; amena esteve quase sempre a temperatura em BH, apesar dos protestos veementes da infantaria carioca, habituada a um Inverno de trinta e muitos graus! Rsssss ―, ao redor de taças de sorvete com generosas colheradas de doce de leite Viçosa (um vício de Marco altamente contagiante, tanto que eu, antes de me ir embora da cidade, fui ao Mercado Central abastecer-me de tão precioso levanta-moral). Como Marco é um rapaz recatado(?), estou, até hoje, em crer que o entra e sai de tanto homem junto naqueles dias terá provocado um ou outro franzir de sobrolho na portaria do prédio. Mas tudo decorreu sempre no maior decoro… até mesmo naquela manhã de domingo, em que eu, Marco e Ludo, depois de termos varado a madrugada na Jô ― a mais badalada e elitista boate gay da capital mineira, com direito a descamisados sem ruga no peito nem prega no colarinho, gogo boys rebolativos, cenas a três, cenas a dois e cenas múltiplas, mas sem que ninguém se tenha de sentir desconfortável por isso ―, irrompemos pelo apartamento e acordámos Ricardo, Leandro e Arthur na batucada (os dois primeiros ficaram de molho devido ao clima “ameno”; já Arthur, o namorado de Marco, aproveitou a desculpa para ficar a dormir que nem um justo). Para compensar, havíamos passado antes na padaria e comprado pão fresco e broa mineira (que, para minha surpresa, leva coco!) para o primeiro café do dia da rapaziada. Vencidos pelo cansaço, Marco e Ludo, que já foram namorados e hoje são os melhores amigos, "apagaram" na cama de casal; não sem antes me oferecerem, encarecidamente, uma vaga. Achei melhor declinar o convite, não por nós ― que somos todos rapazes de família! Rsssss ―, mas por ter a certeza de que não se escapa incólume duas vezes de uma situação embaraçosa.
[Momento rewind: final de noite na Jô, ainda tomados pelo álcool, eu e os rapazes achámos por bem realizar, como lhe poderei chamar sem melindrar os profissionais do ramo?, uma pequena performance num dos queijos onde antes tinham actuado os gogo boys].
Dessa vez, felizmente, não houve fotos para mais tarde recordar, mas desta feita eu sabia que não teríamos a mesma sorte, pois o “capeta” andava de máquina à espreita… Fui flagrado sim, mas sozinho, no sofá da sala, antes de me levantar estoicamente para acompanhar os madrugadores de plantão numa incursão à feira dominical da avenida Afonso Pena ― e lá fui eu, não muito viçoso, mas ainda assim airoso, sem óculos escuros para aliviar a ressaca, de caveira ao peito e correntes à cintura!


“Meu pai é que tinha razão… Como é que uma pessoa do meu nível social e intelectual poderia ficar com uma bichinha afectada como você”. Estou sentado a duas mesas de distância, mas ainda assim ouço, sem esforço algum, todo o desenrolar da novela que ele, “a bichinha afectada” em pessoa, conta com detalhes sumarentos.
Na realidade, ele fala para os seus dois amigos, um homem e uma mulher que mal abrem a boca, mas o seu tom de voz faz com que boa parte dos transeuntes da calçada, dos restantes clientes e dos empregados que àquela hora serviam à mesa no Café com Letras, um espaço para lá de simpático na Antônio de Albuquerque, ficasse a par do seu desaire amoroso e de como o “namorado o maltratava só pelo facto de deixar a escova de dentes molhada na mesa”…
BH é hoje, para minha relativa surpresa, uma cidade cada vez mais gay friendly. Claro que não nos podemos deixar iludir pelas aparências, até porque os mineiros são conhecidos pelo seu conservadorismo, mas o certo é que, além de se multiplicarem na cidade vários espaços assumidamente gays, é fácil detectar na rua ― e em pontos públicos tão diversos como o Mercado Central ou a Feira de Artesanato, que possui mesmo um Ponto G! ― a presença de “colegas”.
E isso, às vezes, acontece mesmo em lugares inusitados, como é o caso do MP5, um clube-galeria, lá para os lados da avenida Raja Gabaglia, onde insisti em ir numa terça-feira à noite. Nem Marco nem J. conheciam o espaço, mas a minha experiência anterior tinha-me revelado um local animado, com boa batida electrónica e gente bonita. Chegados ali, não demorámos nem cinco minutos a perceber que a casa, além de meio vazia, estava por conta dos rapazes. Rapazes que gostam de rapazes, entenda-se. Enfim, não arrepiámos caminho de imediato, dançámos, fizemos por não entrar em rota de colisão com a “loura alucinada”, tirámos as fotos da praxe ao colo do patinho cintilante da entrada – não tirem conclusões precipitadas, o pato é uma graça! Rssssssss ― e acabámos num posto de abastecimento, a aquecer cachorros com molho cheddar no microndas. De brinde, além de animarmos a noite dos pobres miúdos que trabalhavam sem música no posto, ainda levámos para casa porta-sapatos.


Nesta minha passagem por “Belzonte” ― piores do que nós, portugueses, para “engolir" sílabas, só mesmo os mineiros, sobretudo os do interior, que ainda assim têm um sotaque cantado delicioso ―, fui quase sempre apresentado como “amigo do Marco”. O Marco, é bom que se diga, além de excelente pessoa, é um advogado que trabalha no duro para se afirmar, orgulho do pai, da mãe e dos amigos. Marco é também discreto na sua postura perante o mundo e a sociedade, mas muita gente à sua volta tem sabido, progressivamente, da sua orientação sexual. Logo, ser apresentado como “amigo do Marco” acabou por ter um peso e por, desde cedo, me dar uma “cor” à qual não estou habituado.
Não vou dizer que encarei isso de ânimo leve, mas, pela primeira vez na minha vida, aceitei não fazer disso um cavalo de batalha. Aceitei, inclusive, que muitas daquelas pessoas, que não tinham qualquer juízo prévio a meu respeito, fizessem as suas deduções. Se me incomodou? Incomodou um pouco, não vou mentir, mas ajudou-me também a constatar que a grande maioria daquelas pessoas encara a homossexualidade de forma aberta. Tão aberta que se permitem mesmo fazer algumas piadas a respeito, o que é sempre bom para quebrar o gelo.
Entre todas elas, houve uma com quem acabei por conviver de muito perto, até porque foi ela, na ausência de Marco ou Ludo, a minha grande companhia nas tardes de ócio. J. é o que se pode chamar, se quisermos colocar um rótulo, de fag hag, uma espécie de Grace na vida do Will/Marco. A cumplicidade entre os dois é algo muito bonito de sentir, mas foi um processo que exigiu amadurecimento de parte a parte: J., como tanta mulher que se vê rodeada de gays e passa a fazer disso uma realidade, demorou a perceber que tinha de ter a sua vida, os seus amigos e os seus amores fora deste círculo restrito; Marco aprendeu que pode tê-la sempre por perto, mas que há coisas que ela precisa viver sem tê-lo ao pé para apagar os fogos.
Conversei muito com J. Passeámos no shopping, tomámos chocolate quente no Kahlua, almoçámos no Minas Clube, estivemos na sua casa a ouvir música, a ver fotos de família… Ela falou-me dela e quis saber de mim. E eu, que gosto tanto de observar as mulheres, de ver com elas mexem no cabelo, como se movimentam, como tocam, fiquei fascinado com a espontaneidade e a graciosidade de J. ― mesmo quando a flagrava a tentar medir a minha reacção à passagem de outros homens ou quando ela, sem dar parte de fraca, armou um encontro “casual” entre mim e um seu vizinho gay… J. tornou-se, em poucos dias, uma amiga querida e devolveu-me a certeza de que eu, por muitas voltas que a vida dê, vou sempre viver rodeado de mulheres. Elas fazem-me muito bem.

(continua…)

17 comentários:

Marco disse...

Há muito esperava seu relato da passagem por BH, exatamente por prever uma narrativa gostosa como esta, sendo que o post tratou de corresponder às elevadas espectativas.

Fico feliz em ter contribuído, de alguma forma, com uma maior auto-aceitação de sua parte. Como pode perceber, as coisas comigo caminham de forma lenta, segura e gradual - e invariavelmente irreversível.

Obrigado pelas palavras de carinho e pelos belos momentos passados aqui. Ah, vou descontar o fato de você (transversamente) ter me chamado de um baita "queima filme", OK?

:-P

Aguardo a continuação.
E não esqueça: "senta no patinho!!!"
Hehehe!
Bjs.

Edu disse...

Eu estou controlando a lata de Viçosa no chicote, senão o outro come tudo!! :-)

Vou agora mesmo conhecer esse pessoal bacana, seus blogs, porque devem ser pessoas supimpas!

Beijo!

Edu disse...

Mudou o nome do blog, mudou o template... acordou inspirado, foi? Deve ser muito doce de leite... :-)

Pizza de soja veio de uma pizzaria vegetariana que a Irmã e a Mãe descobriram. Quatro "queijos" diferentes todos feitos de soja, e massa de trigo integral. Ainda comi 3 pedaços, tal a fome que me devorava as entranhas. Mas a Mãe teve que me fritar umas batatas depois pra eu não parar no hospital. AAAAAARGH!!

Anónimo disse...

Vim aqui por sugestão do Edu, do Casado(i)s.
E adorei.
Ainda bem que tenho amigos q me dão boas indicações, né? ;-)
Grande abraço

Râzi disse...

Ahauhuahuahuahauhauh!

Gente, o seu template me deixou sem fôlego!!!!

E que narrativa!! Eu amo tudo o que vc escreve! E ter participado da coisa foi uma experiência única!

Diferente de algumas pessoas, o que vc escreve se encaixa perfeitamente na realidade! E toda a poesia e o lirismo que vc coloca na narrativa cai como uma luva!!!

Obrigado principalmente, amigo, por me alertar quanto ao queima-filme! Ah, eu vou ter mais cuidado quando for lá! Podem me chamar de bichinha por andar com ele!!!
hauahuahauahauahuahuahauhauahauh!

Vc foi perfeito, e ele foi ótimo!!! :SD

Beijão, meu amor! Espero repeteco!!!

:D

FOXX disse...

ah
q pena q eu naum fui convidado para conhece-lo

Tarco Rosa disse...

Há algum tempo que não visitava teu blog. Finalmente consegui atualizar as leituras... Teus posts continuam deliciosos, têm aquele tom que só tu consegues dar...
Um grande abraço

Ludo disse...

Que delícia rviver aquela semana através de um relato tão gostoso!

Belzonte esteve mais encantada com a presença de vocês, que não são forasteiros: têm lugar cativo nessa terra de temperatura amena!

Agora anseio pela próxima oportunidade de nos reunirmos novamente!!!

Forte abraço!

AH! O novo template ficou, no mínimo excitante!!!!!!!!!!!!

Goiano disse...

vc so esqueceu de dizer que durante todo tempo eu te mandava msg de apoio!

Goiano disse...

adorei a boca

Will disse...

Estou a ver que o passeio valeu a pena ;)

Cá estou à espera da sessão de café e paleio prometida =)

Anónimo disse...

uau! ainda mais de jeans branco!

Special K disse...

Boas aventuras com um cheirinho tropical. Realmente a fotografia do template é de tirar o fôlego.
Um abraço

Latinha disse...

Meu amigo,

A melhor viagem é sempre aquela que nos leva ao encontro de nós mesmos... ehehe

Tenho certeza que lembranças boas não faltarão e que essa foi só a primeira de muitas que hão de vir.

Abração!

paulo disse...

história fantástica. parece ficção de tão bem contada. e gostei do fim desta parte: de facto, as mulheres fazem muito bem, que seria do mundo sem elas? um rebulício de testosterona? mas melhor pensando: todas as pessoas boas nos fazem muito bem.

abraço!

Uillow disse...

Oz, meu amigo! Quer dizer que estava pelos ares do Brasil e nem comentou? Quero te conhecer tb, oras! Ou vai deixar esse privilégio pra poucos?
E nada melhor do que a convivência pra quebrar certos paradigmas, não é? :)

Abraço, meu caro!

Goiano disse...

cade a parte 2 ...
VC PROMETEU Q EU APARECO NELA