13.10.08

Confessions on a dance floor


So slide over here
And give me a moment
Your moves are so raw
I've got to let you know
I've got to let you know
You're one of my kind


I need you tonight
'Cause I'm not sleeping
There's something about you girl
That makes me sweat

(Need You Tonight, INXS)


"Gajo, adorava foder contigo". Tout court. Dizem que quem anda à chuva é para se molhar, mas, ainda assim, este é o tipo de abordagem straight to the point que, por norma, me deixa algo indiferente. Há quem diga que tenho pruridos a mais, que me comporto, não raras vezes, como um "donzelo" e que, para uma queca (transa) descartável, não é preciso estar cá com coisas. Talvez o problema seja esse, o das quecas descartáveis. Não tenho nada contra uma boa queca descartável, mas já o mesmo não digo das pessoas. Não gosto de quecas com pessoas descartáveis a priori. Pode parecer a mesma coisa, mas não é. Garanto-vos que não é.

Agora o reverso da medalha...

O Médico, boa conversa, um ano mais velho do que eu. Diz que a sua relação de vários anos está em crise, que me acha atraente, interessante, rebeubéu, pardais ao ninho... Acena-me com um jantar, mas, como mostro alguma reserva, sugere antes um copo... Não gosto de blind dates; insisto que antes vai ter de se mostrar. Desaparece do mapa.

O Oficial da justiça e O Advogado. O primeiro vai bem lançado nos trinta, o segundo está quase a chegar lá. Nenhum dos dois me deixa extasiado do ponto de vista físico, mas parecem pessoas agradáveis e de bom trato. Conversamos, mas, quase sem me darem tempo para mais nada, já estão a fazer cobranças, a reclamar exclusividade e a amuar. É delete sem contemplações.

O Arquitecto, primeira metade dos trinta, corpitcho bom todos os dias. A conversa começa bem. Tipo inteligente, com sentido de humor e bom gosto. Numa noite de insónia, manda-me uma mensagem. Mas, lá está, dá-me a impressão de que não andamos bem ao mesmo. Estamos num impasse. Está morno. Quase frio.

O Louro Alto que se julga o Pequeno Príncipe, só que em versão sei-que-sou-bonito-e-safado. Começámos a trocar farpas sem grande consistência, mas a coisa arrasta-se e ele nunca me deixa sem resposta. Tem namorado, diz ele - e eu julgo que até sei quem é, um moreno de parar o trânsito -, mas ainda assim está cheio de graças para o meu lado. A dar alguma coisa, vai ser só putaria da grossa.

O Gestor de linha férrea, seja lá o que isso quer realmente dizer. Não é bonito, mas tem um bom corpo e sabe conversar. É dos tipos que mais se interessou por mim, fora a embalagem, nos últimos tempos. Num só dia mandou-me 11 mensagens e não esconde que está muitoooooooooo a fim, mas fá-lo com elegância. Detalhe: tem uma relação aberta com o seu companheiro de há 13 anos... À última da hora inventei uma desculpa para ganhar tempo. Acho que vou sair de fininho enquanto ainda posso. Não tenho pedalada para estas coisas muito modernas.

O Antropólogo, a mesma idade, com namorado na Polónia. Diz que quer ser meu amigo, mas não arrisca um "desta água não beberei". Estou fascinado com a sua inteligência, com o seu sentido de oportunidade e pela forma como me desafia. É daqueles que dá luta e isso deixa-me muito, mas mesmo muito curioso. Está-me a conquistar pelo cérebro e isso é perigoso. Não sei onde isto vai dar. Vamos jantar na sexta.

O Contabilista, idade de Cristo, bem menos sonso e inocente do que parece ao primeiro olhar. Está louco para arranjar um namorado, o que me deixa de pé atrás. Não me atrai, mas ainda assim, e como tratou logo de me passar o seu número e de insistir imenso para irmos beber um café, eu lá resolvi tentar. Na hora, o tipo fez-se de caro e depois desculpou-se imenso. Fiquei fulo. Purgatório com ele.

O Investigador na área de Humanidades, com apenas 24 anos. Sacrilégio. Não era, não é, meu propósito envolver-me com alguém tão novo. Abro uma excepção e, desde logo, a primeira conversa revela várias afinidades... Desde então, a afinidade não pára de crescer e ele revela uma maturidade que eu não estava à espera. Tenho imensas reticências, mas não nego que a coisa está a tomar um rumo inesperado. Marcámos um café na quinta.

A lista é extensa e nem sequer está completa. A avaliar pelo tamanho da encrenca em que me estou a enfiar, muitos, não duvido, dir-me-ão que mais valia, por ventura, eu dar ouvidos a quem não perde tempo com floreados ou converseta de salão e vai directo ao que (lhe) interessa: "gajo, gostava de foder contigo". Pois é, acontece que eu gosto de preliminares e de jogos de salão.
"Oh God, make me good, but not yet!".

29.9.08

A Vida Dupla de Oz


When I'm drivin' in my car
And that man comes on the radio
He's tellin' me more and more
About some useless information
Supposed to fire my imagination
I can't get no, oh no no no

(Satisfaction
, PJ Harvey e Björk)


O título, roubei-o descaradamente a um dos filmes que mais gosto de Kieślowski ― paz à sua alma ―, mas acabam-se aqui as semelhanças de enredo. Apenas senti necessidade, na semana que passou, de me desdobrar em mais um alter-ego. Como Oz passei a ter um percurso, ganhei uma história e carrego todo um atrelado de emoções que não quero expor (já) a algumas pessoas que estão apenas agora a chegar à minha vida [e chegar não é força de expressão; o mais certo é que algumas, senão mesmo a maioria, não passe da soleira da porta].

Não sofro de múltipla personalidade; tão pouco sou adepto do embuste. Quando crio um petit nom encaro o mesmo como um desdobramento do todo. É uma forma de revelar apenas uma parte do que sou ― a parte que (me) interessa mostrar. Não o sinto como algo desonesto, tanto que não me torno uma pessoa diferente, não arranjo outra profissão, não me reinvento fisicamente nem passo a defender outras ideias que não as minhas. Sou sempre eu, não por inteiro, mas sempre eu.

Dizia eu então que senti necessidade de me aventurar para fora de pé. Não é uma sensação agradável ― sobretudo para quem, como eu, é avesso a abandonar a sua esfera habitual de conforto ―, mas nem sempre podemos jogar (só) pelo seguro e há que ter cojones para saber admitir quando a nossa teimosia nos atolou num impasse. E, verdade seja dita, nem me desagrada de todo a ideia de me pôr novamente "A Caminho de Idaho". Há um lado lúbrico ― que passa pela adrenalina de ter de fazer escolhas, acertadas ou precipitadas, com base no pouco que também me é dado a ver ― muito revigorante. É uma forma de poder e o poder, quando bem administrado, funciona como afrodisíaco.

De toda a forma, mesmo disposto a sair dos meus domínios, há linhas que procuro não pisar. Curiosamente, uma delas coloca-me, logo à partida, um pouco à margem da dominante masculina, que acha extremamente vantajoso, até onde consigo perceber, o facto de nós, homens, nos podermos relacionar sexualmente sem rodeios e sem ter de apelar muito à imaginação. Queremos sexo, então nada melhor do que dizer ao que vimos. Nada contra, penso até que se evitam assim muitos equívocos ― eu, da primeira vez, por exemplo, tive de ganhar coragem para me certificar como as coisas se iam passar e recebi como resposta um indignado “Mas ainda nem fomos para a cama e já me queres limitar a um papel?”; para não falar de um amigo que ainda há pouco tempo voltou frustrado de um encontro porque, sem terem falado primeiro, chegados à hora H, nenhum dos dois quis, como direi sem ferir susceptibilidades? (a dele, não a vossa), ser o primeiro a dar-se ao manifesto.

Não tenho nada contra, mas também não rezo por essa cartilha. Não sou pudico e, por mais de uma vez até, tentei ir por essa via, mas esse ritual primário do "sou isto-quero aquilo, tenho isto-quero aquilo, dou isto-quero aquilo" não me dá tesão. Pode ser prático, pode mesmo ser coisa de macho, mas não é para mim. Não me excita o óbvio, o que querem que faça. Mas, como disse antes, a limitação é minha. Estou em minoria, eu sei, mas estou longe de ser uma ave rara. Por incrível que (vos) pareça, encontro sempre, aqui e acolá, espécimes semelhantes ― alguns gostam de se fazer passar por, na esperança de levarem água ao bico, mas não os condeno, que a vida está difícil e há gajos, como eu, que ainda gostam de complicar.

I can't get no satisfaction 'cause I try and I try and I try and I try… Mas quando se trata de obter o meu prazer, eu não sou homem de baixar os braços (nem os braços, nem o resto). Oh, no no no

22.9.08

It's on the house


Got no boundaries and no limits
If there's excitement, put me in it
If it's against the law, arrest me
If you can handle it, undress me

(Give It 2 Me, Madonna)


Não há mal [nem neura] que dure muito por estes lados. Na manhã seguinte ao post anterior já o meu safe mode estava activado, pelo que senti um leve embaraço ao reler certas passagens... Bom sinal, pensei, mas não retoquei uma vírgula que fosse. Arrependo-me, talvez, de algumas coisas que fiz (de outras tantas que deixei de fazer, também), mas não do que (e como) escrevi. Foi um momento catártico [o meu momento catártico] e como tal não totalmente isento de exagero. Mas até isso, no devido contexto, eu encaro como parte do processo de desintoxicação. Entendo sem culpa que estou sujeito a fraquejar de quando em vez, mas enxoto com veemência a auto-comiseração. Carpir mágoas e acusar o universo de estar a conspirar contra mim não faz parte do meu repertório, por isso mesmo, logo que pude, lambi as feridas, arejei as ideias e retomei a vida. Só não me apressei, como tinha prometido, a colar os cacos - juntei-os, para não me estorvarem, e tenho estado a olhar para eles, indeciso entre voltar à forma antiga ou arriscar um novo formato...
Expiada a crise existencial, devo dizer-vos que a minha semana não correu nada mal: não deixei de ir suar as estopinhas no ginásio (aproveitei até o facto de ter um cartão de membro que me permite mudar de pouso para ir "lavar a vista" fora dos domínios usuais, mas isso é assunto, quem sabe, para outro post), comecei um novo curso, estou a organizar mais uma viagem de trabalho, almocei a meio da semana com vista para o rio, reservei parte de uma noite para rever Breakfast at Tiffany's e recebi mimo de vários amigos, o que, além de me aconchegar, ajudou a sossegar o ego fragilizado.
Sexta à noite, reencontrei o Will. Pois o Will, tão despachado que me chega a deixar cansado só de ler tudo o que é capaz de fazer num único dia, passou o Verão em estado de graça. Está apaixonado e não o esconde de quem se quiser dar ao trabalho de reparar. Cumprida a habitual ronda de má-língua, emendámos a happy hour com o jantar, o que permitiu ao F. se juntar a nós. Foi um serão agradável, ainda mais porque era suporto irmos à abertura do Queer Festival. Conversa vai, conversa vem, o certo é que perdemos a hora e tivemos de escolher, à pressa e ali mesmo, um filme qualquer para ver... O Will, que não é nada distraído, bateu os olhos nos dois rapazes em cuecas do cartaz, ponderou as implicações do título Gomorra e deve ter pensado "Se Maomé não vai à montanha, a montanha vem a Maomé". Eu que já tinha lido a sinopse - e sabia por isso tratar-se de um retrato a sangue-frio, muito cru, das máfias que controlam Nápoles, no sul de Itália - percebi logo que não íamos ter sorte nenhuma, mas deixei que fossemos ao engano. No final, acabei por me prender à estória, mas era notório o ar francamente desapontado de outros rapazes à saída... Hummm, aposto, só por vergonha alguns deles não foram dar queixa por publicidade enganosa [e o mesmo deve estar a pensar quem viu a foto de abertura deste post - by the way, se alguém conhecer o paradeiro do rapaz tatuado na coxa, faça-me a fineza de lhe comunicar que dou tecto, cama, roupa lavada, férias e décimo terceiro - e se deu ao trabalho de ler até ao final! Quem manda...]

16.9.08

Purga


So now for restless mind, I could go either way
(Don’t Bring Me Down, Sia)


Há já alguns dias que trazia este post alinhavado mentalmente e ia ser no meu melhor estilo leve-solto-e-não-sou-de-jogar-fora. Entre outras ligeirezas, ia falar do meu cabeleireiro, tema recorrente (para verem a importância que dou ao meu cabelo), que está cada vez mais abichanado para o meu lado, sem que eu consiga perceber se isso é bom ou mau sinal, e das massagens no escalpe para amansar o pêlo que ali recebo, uma maneira de compensar o tempo (o imenso tempo) de espera até o rapaz me colocar, salvo seja, as mãos em cima; ia falar do jovem actor, apareceu numa altura em que eu ainda estava descabelado (o que não é lá muito justo), com quem troquei olhares furtivos, a quem cobicei as botas e a quem invejei o físico; ia falar do Nanolift, que anunciam como uma espécie de "milagre" da cosmética (mais um), um cocktail pós-injecção, pós-laser, pós-cirurgia, pós-peeling, perfeito, dizem, para acabar com os pés-de-galinha à volta dos olhos; ia falar do estado catatónico em que andei, ao ponto de me rever em cada letra de música; ia falar de Before the Devil Knows You're Dead, um filme denso, (a)moral, onde Philip Seymour Hoffman (Capote, Magnolia...) é, mais uma vez, portentoso; ia falar do tipo, belíssimo exemplar com o seu quê de animal exótico, com quem tive uma espécie de encontro imediato, não fossem os sacos de compras (dele) e do ginásio (meu) terem atrapalhado a mobilidade.
Ia falar de tudo isso, e talvez ainda de uma ou outra insignificância de que me lembrasse à última da hora, mas já não vou. A minha semana começou mal. Minto. Não começou, porque, de certa forma, o que aconteceu assemelhou-se mais à última gota que faz transbordar o copo. Há um bom tempo que não ando nada bem; há um bom tempo que não gosto nada do rumo que a minha vida tomou. Só que, como tenho imensa dificuldade em dar parte de fraco, fui tratando de sacudir a poeira para debaixo do tapete. Permiti-me, de vez em quando, aqui e acolá, um grito de raiva, um desabafo. Mas nunca foi o suficiente para exorcizar os (meus) demónios.
O golpe de misericórdia, que me atingiu como se tivesse sido atropelado por um camião, chegou sob a forma de uma ruptura penosa. Uma ruptura que eu não fui capaz de fazer, de maneira definitiva e de forma a não deixar qualquer porta entreaberta, lá atrás. Permiti que a situação se arrastasse muito para lá do razoável - sei lá se por ingenuidade; sei lá se por vaidade oca de saber alguém incapaz de me esquecer; sei lá se por não saber dizer não taxativamente; sei lá - e agora isso tornou-me co-responsável deste desfecho triste. No fundo, deveria sentir-me aliviado, porque acabou de vez, mas não consigo ser egoísta e frio ao ponto de saber alguém de quem gostei mal sem que isso não me atinja também por tabela.
Sou cabeça dura; mesmo na merda, eu insisto sempre em extrair alguma coisa de positivo, na lógica do "há males que vêm por bem". Ao ter caído finalmente por terra, com os meus cacos espalhados por tudo o que é canto da sala, eu não tenho mais como seguir como se nada fosse - não me parece mal que assim seja. Mais: desta vez, não vou a correr juntar todos os pedaços para os colar à pressa, sempre na esperança bacoca de que, se me esforçar, ninguém vai perceber que estou remendado.
Preciso admitir, por muito que me doa, que não estou feliz. E não estou feliz porque, ao contrário de outras áreas que sempre consegui controlar, a minha vida sentimental é um barco à deriva. Choca-me perceber, eu que sempre fui tão racional (e talvez seja esse um dos problemas, o ser racional quando devia ser emotivo), que tenho uma propensão inegável para envolvimentos complicados - nunca me dou por inteiro a quem se apaixona por mim, antes me aproximo de quem nunca se vai apaixonar por mim. As minhas relações, além de incompletas, são desequilibradas. Constatar que isto se tornou um padrão é para mim igual a levar um soco no estômago, pois sempre me tive na conta de alguém difícil, mas, ainda assim, equilibrado. Que atracção é esta pelo abismo, pelo improvável, pelo que está fora de alcance? É masoquismo? É autodefesa? É auto-boicote? O que eu ganho, que prazer é que eu tiro de relações em que sou usado para tapar a solidão e a carência?
Não tenho resposta para nenhuma destas perguntas. Ou tenho, mas não são as certas. Não estou habituado a não saber que rumo dar à minha vida. Não estou habituado a sentir-me impotente quando se trata de me regenerar. Preciso de uma purga, mas esta não é daquelas que vai lá com uma crise de choro homérica para lavar a alma. Estou ferido, preciso sarar. Estou perdido, preciso parar e ter a humildade de pedir ajuda para achar o caminho. Sozinho não vou lá. Por ora, só me permito uma certeza: eu vou sair desta. Pode demorar, mas eu vou sair desta. E a cada música de Sia que escuto, melhoro um pouco, porque, perdõem-me a presunção, todas foram escritas para mim.

10.9.08

On


Sometimes, when I look deep in your eyes, I swear I can see your soul
(Sometimes, James)


Encontro marcado na Maria Caxuxa. Já vou um pouco atrasado, mas, de nada me adianta apressar o passo, pois fico retido no mar de gente que se espraia entre o Clube da Esquina, na rua da Barroca, e o Portas Largas, já na Atalaia. Decididamente, a rapaziada tomou conta do lugar e, a cada semana, vai um pouco mais além na demarcação invisível da "coutada de caça" a céu aberto. Nada de muito explícito, ou escrachado, mas suficientemente claro para não "levar gato por lebre" ― if you know what I mean... É a Lisboa gay no seu melhor.

Estão de tal forma entretidos uns com os outros que, para abrir caminho, quase sou obrigado a dar braçadas… No auge do aperto, vem-me à cabeça “Well the men come in these places / And the men are all the same / You don`t look at their faces / And you don`t ask their names”. Não seria o caso de perguntar nomes, mas, admito, ao fintar um ou outro de mais perto, bem que me apeteceu anotar uns quantos números de telefone… Deixa quieto. A calçada frente à Maria Caxuxa está, ligeiramente, mais desafogada. Os meus amigos lá estão, de copo na mão e sorriso escancarado.

Dali vamos para o Majong, na rua de cima, que, a partir das duas, começa a encher graças ao DJ de serviço. O Majong, já o disse aqui, não tem grandes segredos para mim ― há anos que o frequento. Uma das minhas amigas ficou de encontrar ali o Jose, um espanhol que vive e trabalha há muito anos em Lisboa. Jose é uma figura. Já fala fluentemente português e incorporou a nossa gíria, mas não perdeu ― nem há-de perder ― o seu forte sotaque castelhano. Da primeira vez que o vi, de raspão e neste mesmo bar, fiquei com a séria impressão de que o rapaz pertencia ao “clube da esquina”. De toda a forma, nunca me fio muito no meu gaydar. Desta vez, porém, reparei nos anéis e nas pulseiras e pensei com os meus botões: hummmmmm…. Mas ele não dá “pinta”. Passado mais um bocado, um outro amigo da minha amiga puxa de uma canga trazida da Tailândia, que o Jose terá supostamente pedido, e o rapaz, radiante, pergunta-nos: “não fico muito ‘bichona’?” Hummmmmmmmmmm…

A confirmação chega quando já não me restavam mais dúvidas. Ao falar-se de orkut, de hi5 e afins, Jose torce o nariz e diz que prefere logo ir directo aos “lugares da Net que têm mais a ver com a minha [sua] espécie”. Bingo! A partir dai, o agent provocateur fica em modo on. Interrogo-me se a recíproca é verdadeira e também ele accionou o seu gaydar… A noite (pros)segue sem sobressaltos. Na hora da despedida, que Jose não está para chegar de novo a casa de manhã, estende-me a mão e solta: “gostei de te conhecer rapaz!”. Permitimo-nos, por breves momentos, um olhar a direito. O último teaser da noite em jeito de “às vezes, quando ficamos olho no olho, juro, sou até capaz de ter ver (d)o avesso”.

4.9.08

Romeo's blues


Well, you can fall for chains of silver, you can fall for chains of gold
You can fall for pretty strangers and the promises they hold
You promised me everything, you promised me thick and thin
Now you just say, "Oh, Romeo, yeah, you know
I used to have a scene with him"

(Romeo and Juliet, The Killers)


Esta semana assisti, finalmente, à cena em que Kevin e Scotty, em
Brothers and Sisters, celebram, perante a família e amigos, a sua união de facto. Não é segredo para ninguém que lê este blogue há já algum tempo que acompanho esta série norte-americana da ABC e que, de quando em vez, me dá para a comentar aqui. Desta feita, confesso sem pudor, deixei rolar algumas lágrimas. Acho que chorei mais pela forma do que pelo conteúdo. Passo a explicar. Comovi-me mais pela forma como as reacções dos vários intervenientes foram tratadas do que propriamente pelo acto em si.
Preciso ser honesto: casar com outro homem, ou até mesmo morar junto, é algo que não enxergo, a curto prazo, no meu horizonte. Nem sei se algum dia estará nos meus planos. E não é por falta de bons exemplos, que entre os meus amigos mais recentes tenho, pelo menos, duas uniões que me merecem o maior respeito e admiração por tudo o que já conseguiram e ainda hão-de viver. Não tem, até onde imagino, é muito a ver comigo.
Na verdade, não sei se estarei fadado para o casamento ou para uma vida a dois que exija coabitação... Suspeito que já atingi aquele patamar de egoísmo - ou de solteirice aguda, se preferirem, a que os franceses apelidam pomposamente de célibataire endurci - em que se torna difícil a ideia de partilhar o espaço e de conviver diariamente, e de muito perto, com outras manias que não as minhas... Sim, porque já a ideia de adormecer e acordar com outra pessoa ao lado é-me simpática - aliás, acho deliciosa a sensação de adormecer e acordar abraçado a quem se gosta.
Seja como for, sinto falta de me apaixonar. Apaixonar para valer. Se eu for dar ouvidos ao que vaticina o meu horóscopo - sou pragmático, mas leio horóscopo -, esta é uma semana "daquelas". De facto, está a ser uma semana "daquelas", não só pelo trabalho acumulado que tento despachar à custa de apenas três horas de sono por noite, mas porque tive de oferecer a minha amizade a dois homens que são, cada um à sua maneira, importantes para mim. Um, porque acho que não vai dar certo; o outro, porque acho que não deu certo. Nenhuma destas decisões é totalmente definitiva, mas foram pensadas, mastigadas... Ainda assim, sou sempre acusado de as tomar de forma fria e excessivamente racional, como se para mim lidar com os sentimentos, os meus e os dos outros, fosse tão fácil como beber um copo de água.
Não é, mas algo está, porventura, errado na forma como eu me dou a ver aos outros, já que este é um erro recorrente quando avalio o meu trajecto sentimental. O facto de eu não gostar de idealizar quem está ao meu lado - porque para mim, gostar de alguém implica eu admirar as suas qualidades, mas também ser capaz de identificar e de viver com os seus defeitos - sempre me trouxe problemas. No amor como na amizade. Passo por alguém cru, quando não mesmo cruel, que coloca nas relações uma dose exagerada de realismo e por isso cria insegurança na outra parte. E é ai, mais ou menos por essa altura, que deixo de ser eu - com todas as minhas fraquezas, incoerências, imperfeições - aos olhos do outro para passar a ser um ideal de honestidade que as pessoas admiram, mas temem. Um ideal a que eu não tenho como corresponder. Um ideal a que eu, suprema das ironias, nunca quis ser associado. Porque tudo o que eu procuro é alguém que seja capaz de me amar pelo que sou e não por aquilo que projecto. Alguém para quem eu não tenha de fingir que sou perfeito, quando a perfeição, stricto sensu, nunca me interessou.

31.8.08

Au fil des jours

River Phoenix e Keanu Reeves em My Own Private Idaho


I don't care if Monday's black
Tuesday, Wednesday - heart attack
Thursday, never looking back
It's Friday, I'm in love

Monday, you can hold your head
Tuesday, Wednesday stay in bed
Or Thursday - watch the walls instead
It's Friday, I'm in love

Saturday, wait
And Sunday always comes too late
But Friday, never hesitate...
(Friday I'm in Love, The Cure)




Pela boca morre o peixe. Nunca dizer nunca, não vá o Diabo tecê-las, tornou-se uma espécie de postulado dos nossos dias, uma superstição - lagarto, lagarto, que o Diabo seja cego, surdo e mudo - a que nem os descrentes escapam incólumes. Ninguém quer morrer pela boca. Ninguém quer ser apanhado em flagrante negação. Não sendo eu a excepção que desdiz a regra, sexta-feira passada caí em contradição. Fi-lo por impulso, mas suficientemente consciente para não me agarrar à primeira desculpa esfarrapada. Fi-lo porque cheguei ao chamado ponto do não retorno, e entre dar o dito pelo não dito ou deixar alguém de quem gosto na mão, eu posso até hesitar, mas não vacilo. Fi-lo não porque a isso me levaram, mas porque a isso eu deixei que me levassem. Porque na vida, cedo ou tarde, de um jeito ou de outro, todos nós somos postos à prova. E é ai que deixa de ser apenas uma questão de saber viver com as nossas escolhas para passar a ser também uma questão de aprender a viver com as implicações dos nossos actos. Podemos teimar em viver pelas regras que a nós mesmos impusemos. Ou não. Na sexta-feira passada caí em contradição. Mas sou Homem o bastante para não fazer disso uma excepção. Desdizer-me-ei tantas quantas as vezes em que me permitir a liberdade de voltar atrás. Entre uma página imaculada, sem borrões, e uma página reescrita, com emendas e rasuras, agarro a última. Há erros grosseiros que se evitam. Mas há outros que só o são se assim os entendermos. Sexta-feira passada não caí em contradição. Tão-só não permiti que o medo de errar me impedisse de viver o momento.

26.8.08

Esperando aviões - Parte III

O "meu" voo SP-BH prestes a decolar de Congonhas. By Latinha

I find you in the morning
After dreams of distant signs
You pour yourself over me
Like the sun through the blinds
You lift me up
And get me out
Keep me walking
But never shout
Hold the secret close
I hear you say

(Cuts You Up, Peter Murphy)



Salto da cama ao toque do despertador, sem delongas e sem dar sequer tempo ao corpo de fazer manha. Ainda assim, Latinha faz-se anunciar antes do que previa ― por um triz, escapo à suprema vergonha de ser surpreendido de cabelo em pé, amarfanhado e a cheirar a ontem. Abro a porta. Aquele rosto, de sorriso escancarado, é-me extraordinariamente familiar, por mais que esta seja a primeira vez que estejamos, para valer, frente a frente.
Noutros tempos, é bem provável que eu e o Latinha trocássemos longas cartas, que demorariam semanas (quiçá meses) para chegar aos seus respectivos destinos, e nos tratássemos por “meu muy estimado amigo”. De certa forma, parece-me, há qualquer coisa nas nossas condutas e posturas que nos faz continuar a sentir, não raras vezes, como ovelhas tresmalhadas entre pares ― e foi isso, mais até do que a feliz coincidência de escolhermos o mundo de Oz e a estrada de tijolos como analogia para uma nova fase das nossas vidas, que nos aproximou ― e a sentirmo-nos fora de contexto, ou, em outras palavras, lost in translation.

Ironia ou não, o facto é que foram, precisamente, as novas ferramentas do mundo moderno a permitir que, no espaço de um ano e pouco, nos tornássemos amigos e, até certo ponto, confidentes. Por isso, naquela manhã parda de uma São Paulo a prometer (finalmente) chuva, dei-lhe um abraço, puxei-o para dentro e tratei de o instalar, dispensando maiores cerimónias, numa cadeira enquanto me continuei a barbear. Latinha saíra ainda de madrugada da sua cidade, mas não acusava o menor vestígio de cansaço. Pelo contrário, mostrava-se ansioso em retomar a conversa no ponto onde havíamos parado dias antes. E foi o que fizemos. Não mais por MSN, por e-mail, por Skype ou até de webcam ligada, mas como dois antigos roomates que se reencontram. A grande diferença foi que desta vez, para variar, não tivemos nem um Atlântico, nem um fuso ingrato de cinco horas a separar-nos.

Alguém se lembra de Os amigos de Alex (The Big Chill no original)? Este filme de Lawrence Kasdan marca-me até hoje. E, por curioso ou inusitado que vos possa parecer aqui a referência, o certo é que a minha passagem por São Paulo, que serviu de pretexto para estar com o Latinha, teve ainda um outro efeito colateral que me trouxe à memória esse filme. No estranho (e fabuloso também) mundo à parte dos blogues estabelecem-se afinidades e ligações que desafiam a lógica. Quando me iniciei em A Metamorfose de Oz, não tinha de todo a intenção de fazer amigos; muito menos de me dar a conhecer. Só que a vida troca-nos as voltas e, sem que me desse conta, fui quebrando, uma a uma, várias regras que me tinha imposto.
Além do Latinha, o Edu foi outra das pessoas que me "obrigou" a reconsiderar a minha postura e a baixar as defesas. O meu contacto com Edu extra-blogue é limitado, para não dizer mesmo escasso, ainda assim ele soube conquistar um espaço entre os meus afectos pelo seu humor certeiro, pela forma como encara a vida, pelos seus valores e, muito importante, como, de uma maneira ou de outra, ele arranja sempre maneira de se fazer presente. Latinha e eu brincamos que Edu é uma espécie de guru para nós, pois durante muito tempo fomos (e ainda somos, até certo ponto) os dois “gays” mais teóricos até onde a vista alcança nesta vasta blogosfera.
Na realidade, eu não sou muito de pedir conselhos, mas gosto de observar (mesmo que a uma distância segura). Edu, juntamente com Ricardo ― ora ai está outra figura-chave, já falei dele antes; ao contrário de Edu, não chega de mansinho, pois entrou de rompante na minha vida, soube antes de mim que íamos ser amigos e não esmoreceu quando me mostrei, tantas vezes, esquivo e arredio; hoje, além de um querido amigo, é também alguém que me ensina a não ser tão definitivo nas minhas apreciações ―, é quem está mais próximo de mim na faixa etária, mas olho para ele, e para a relação cúmplice e equilibrada de quase 9 anos que tem vindo a construir com o M. (aka Bichinho ou Mau-Mau), e não deixo de me sentir um quase “adolescente tardio”.
Excelente a tarde e noite que passámos juntos: Edu e M. vieram-nos buscar ao nosso hotel na Paulista e levaram-nos a passear pela “sua” São Paulo mais a norte. Fomos dos primeiros a visitar a casa nova, a experimentar as poltronas acabadas de estrear e a partilhar o leito da cama super king size (nada de pensamentos impuros, que só estivemos sentados à conversa e a troçar do ar desconfiado do vizinho da frente…). Fomos também voluntários na importante missão de testar a qualidade das pizzas locais.

Na manhã seguinte, eu e Latinha fizemo-nos à estrada. À nossa espera, em Campinas, tínhamos Z., amiga do Latinha há uns bons anos, uma daquelas pessoas que nos conquista desde o primeiro momento. Além de nos abrir as portas da sua casa por uma noite, Z. foi uma anfitriã que me guiou, apesar do tempo chuvoso, por lugares da sua cidade como a feira dominical de artesanato, o Parque Ecológico Monsenhor Emílio José Salim ou o restaurante Bráz. Mas, mais até do que isso, o que me cativou mesmo foi a sua disponibilidade para a vida, o seu olhar arguto e a sua mentalidade transversal. Falámos das nossas sexualidades sem tabus e sem falsos pudores. Rimos, brincámos e levei, pela primeira vez, eu acho, a sério alguém que me aconselhou a enfrentar o divã do psicanalista.

Até agora, só tenho falado dos encontros que aconteceram durante esta viagem, mas também houve desencontros. O primeiro deles ocorreu com o Jackson, que, na última chamada, não se deu. Já combinámos que ficará para uma próxima. O segundo foi com alguém que insiste em não sair da minha vida, mas que, nos momentos cruciais, não se comporta como um amigo, o que dirá de quem se diz com pretensões a ser muito mais do que isso. O terceiro, para ser justo, não chegou a ser bem um desencontro, pois, vendo a frio, só eu ponderei seriamente a ideia de um encontro. Não é muito do meu feitio correr riscos, sobretudo quando há luzes encarnadas a piscar e já fui avisado, mais do que uma vez até, a não tomar aquele atalho.
Ainda assim, trocámos várias mensagens telefónicas durante quase toda a minha estada no Brasil. É um jogo sem fim à vista, para já. Há afecto (e cumplicidade até onde ele deixa e eu estou disposto a ir), mas uma coisa chamada tesão impede-nos de sermos só amigos ― e seria, acreditem, muito mais fácil (e sensato) para os dois se nos ficássemos pela amizade. Mas não dá. Já tentei ser uma espécie de irmão mais velho, de me ficar pelo papel seguro de quem vê de fora, mas, a dado momento, a coisa resvala sempre para uma tensão que pede cama. Pergunto-me agora se algum dia ele terá maturidade, coragem e foco para sair da toca do lobo e se mostrar de corpo inteiro, despido de artifícios e ciente de que a paixão, como a vida, terá sempre o seu quê de impoderável.

Por fim, e após um breve retorno a Belo Horizonte, regresso a casa com muitos mais quilos na mala ― entre outras coisas, não resisto a trazer vários pares de sapatos e ténis. Em compensação, estou mais magro. Não suficientemente magro, mas já naquele ponto em que a minha mãe vai olhar, desconfiada, para o fundo das minhas calças e achá-lo com pano a sobrar... Mas, coração de mãe, é sabido, fraqueja; o mesmo já não posso dizer, infelizmente, dos Aussiebum e dos Blueman guardados na gaveta, que não enganam nem fazem favores. Santa futilidade, dirão alguns. Não se apoquentem. Esta viagem deu-me tempo de sobra para (re)pensar algumas coisas. Ainda não sou o homem que gostaria de ser, mas também já não sou mais o Homem que era ontem. Sei por onde vou, só não sei quando vou lá chegar.

Fim

18.8.08

Esperando aviões - Parte II

Por Jordi Labanda

I’m only human
Of flesh and blood I’m made
Human
Born to make mistakes

(Human, Human League)


Deixo Belo Horizonte ao final da tarde, já com a sensação de que ficam para trás rotinas, lugares e pessoas que se tornaram por demais familiares nos últimos dias. O meu avião para São Paulo imobiliza-se na pista de Confins quase uma hora, à espera provavelmente do okay de Congonhas, mas isso, por mais que me irritem atrasos de última hora anunciados aos bochechos, em nada interfere com os meus planos. Amigos e conhecidos estranham a minha escolha. Para eles, o lógico seria eu ir de malas aviadas para a Bahia, talvez para o Rio, mas não para São Paulo, essa metrópole desmesurada, com mais habitantes do que Portugal inteiro, conhecida pela sua neblina fina e pelas libelinhas ruidosas que riscam os céus ― tantas que a capital paulista só perde para Nova Iorque ― na esperança de fintar o famigerado trânsito. Em São Paulo, todas as horas são de ponta.
Mas eu gosto de São Paulo. Aliás, já gostava de São Paulo ainda antes de ali colocar os pés pela primeira vez, há uns bons anos. Logo, volto sempre que posso. Como todo o bom urbano-convicto, eu não me intimido com ruas maltratadas, gente a mais, condutores mercenários ou criminalidade. Não me incomoda também o lado anónimo da grande cidade, porque em (quase) todas elas eu sou capaz de traçar a minha geografia afectiva. É um facto, raramente fico sozinho em São Paulo ― e sim, isso faz muita diferença na hora de a enxergar a uma escala mais humana ―, mas eu gosto da arquitectura, dos restaurantes, das livrarias, das lojas, dos museus, do teatro, dos “inferninhos” da Augusta…

Três noites e dois dias. Não é muito para matar a saudade. Não vai dar tempo de passar no Ibirapuera, de comer no libanês do Paraíso, de ficar indeciso na padaria do Benjamim Abrahão, em Higienópolis, de me tentar com os pastéis do Zé, em Pacaembu, ou de me esbaldar na happy hour da Vila Madalena, mas, em compensação, não falho a taça de açai gelado na esquina da Augusta com a Oscar Freire, nem os meus pousos de sempre na Lorena, onde gosto de ficar à conversa com os empregados da Cavalera, de beber o expresso com muffin do Suplicy ou de me perder por entre as estantes da Livraria da Vila ― não é tão grande, nem tão diversificada, como a Cultura da Paulista, mas tem um traçado e uma disposição primorosos.
Na primeira noite, chego já tarde e sem disposição para uma balada feroz. Gosto de andar a pé, mesmo fora de horas e em São Paulo; aproveito que não estou longe, e que o espaço fica aberto até tarde, para ir comer o hambúrguer premiado do Ritz. Os mais poupados dificilmente acharão bem empregue o dinheiro que se paga por um pedaço de carne embrulhado em pão, mas os hambúrgueres do Ritz inscrevem-se na não-tão-nova-assim lógica de fazer de um prato rápido algo mais caprichado e (quase) gourmet. A carne é muito tenra, desfaz-se na boca, e a clientela… bem, a clientela da casa na Alameda Franca é famosa por ter feito dali um animado e concorrido point gay. Saboreio a carne, poupo a garganta ainda inflamada com um suco de abacaxi com hortelã e deixo-me ficar, entretido, a observar as manobras de diversão dos rapazes, a solo, em dupla ou em matilha. A noite está só a começar para eles, mas para mim o dia vai longo. Cama.

Sexta-feira. Passo os olhos rapidamente pela Veja São Paulo e, quando dou por mim, já vou a meio da Augusta à cata de ingressos para essa mesma noite. A crítica não poupa elogios à Festa de Abigaiu, uma peça adaptada a partir de um texto de Mike Leigh ― realizador de Closer, um dos meus novos “clássicos” ―, em cartaz há um ano. Confesso que, à partida, não sou grande entusiasta de comédias, mas esta, sobretudo na metade final, acabou por me arrancar umas boas gargalhadas.
Ainda não é meia-noite quando saio para a rua, mas a Augusta já está num frenesim de dar gosto. Não posso dizer que me sinto totalmente tranquilo por ali, mas o meu lado assumidamente voyeur sempre leva a melhor. Aquela coisa decadente do chamado Baixo-Augusta, na Consolação, outrora point da Jovem Guarda e zona chique na década de 1970, continua a ter muito de Boca do Lixo, que os apreciadores de uma estética trash-cult têm sabido manter. Gosto daquela mistura explosiva de cerveja barata e clubes nocturnos de putas e michês (os nossos chulos). Pelo meio ficam vários “inferninhos” dignos de nota, como é o caso do Vegas.
O Vegas foi-me apresentado por uma amiga paulistana há uns dois anos e desta vez, mesmo sem estar na cidade, ela não desarmou. Como ainda era cedo, comi à pressa uns temakis que não me deixaram saudades e lá me fui colocar na fila para entrar no Vegas ― muito organizada, a minha amiga havia-me colocado na lista de entradas dessa noite, mas eu esqueci-me de confirmar… Entrei à mesma. O Vegas mudou a decoração e, dizem as más-línguas, está a tentar imitar a iluminação do D-Edge. Os “informantes” da minha amiga, parece, também não aprovaram por completo a frequência da casa nessa noite, mas eu, que não sou freguês habitual, não quis nem saber e joguei-me na pista de copo na mão.
Achei o Vegas, liberal por vocação, muito mais gay do que da última vez, mas confesso que gostei de ver os dois “ursões”, que destoavam da maralha, a passar de mão dada sempre que iam aviar mais um copo ao bar. Lá pelo terceiro vodca com energético ― misturado com uma dose cavalar de Naldecon, não fosse a gripe querer ser mais teimosa do que eu… ―, o DJ de serviço é atacado por uma onda de nostalgia e vai repescar, mas com a devida batida techno, um clássico dos late 80’s. Não devo ser o único da casa a reconhecer Human, dos Human League, pois canta-se em uníssono. Eu bem tento juntar-me ao coro, mas, na altura do refrão, a voz atraiçoa-me ― grande maldade… sabe-se lá quando volto a ouvir Human League num porão escuro...
Só sei que o vodca, os Human League, as luzes, tudo junto, desviaram o meu foco para um casal. Estou para saber até hoje se eram namorados, mas isso também não vem ao caso. A cumplicidade entre eles era evidente. Ela, muito bonita, tinha um dragão enorme tatuado nas costas nuas, já ele apresentava-se com um look no melhor estilo “bom rapaz, mas tenta-me e verás”, e era igualmente delicioso ― pelo menos, àquele adiantado da hora, pareceu-me… Não me perguntem como, só sei que ― shame on me ― me insinuei claramente para eles. Já estava quase colado aos dois a dançar quando o meu alarme soou:
- Mas que porra é esta? Onde é que eu quero chegar?
Tudo bem que continuo a ser assaltado por uma certa ambiguidade, mas daí a envolver-me num triângulo de vértices pouco definidos não me pareceu o melhor caminho. Não agora. Não ali. Discretamente, bati em retirada antes que fosse tarde demais. Assim como assim, tinha a desculpa de não me poder esticar muito na noitada… Afinal, ainda antes das sete da manhã teria o Latinha a bater-me à porta do quarto…

(continua…)

11.8.08

Esperando aviões - Parte I


E o louco que ainda me resta
Só quis te levar pra festa
(
Esperando Aviões, Vander Lee)



Jeans brancos. Botas, camisa e blusão pretos. Acho que já passa das dez da noite quando me vou encontrar com eles. A Cantina do Lucas fica dentro do edifício Maleta, antigo reduto da boémia mineira, mas não os acho de imediato nas mesas do lado de fora. Toca o telefone. Aliviado, levo a mão ao bolso das calças e atendo; não me apetece nada ficar ali, especado, a revistar um por um todos os rostos até encontrar algum que me seja vagamente familiar ― claro que ser míope, e insistir em sair para a rua sem lentes, também não facilita a tarefa! São duas da manhã em Portugal, mas em casa querem saber se cheguei bem ― sim, cheguei bem.
Nisto, vejo alguém, que reconheço das fotografias, levantar-se de uma das mesas e acenar para mim. É o Ricardo. Será ele o primeiro que abraço. Ser o último a chegar ― a bem da verdade, não fui o último, já que Ludo e J. chegaram depois, mas deles falarei mais à frente ― tornou aquele momento menos óbvio do que esperava. Mas há, por mais que já tenhamos falado com aquelas pessoas antes, que já as tenhamos visto em fotos ou que até saibamos detalhes da sua vida pessoal que muita gente mais íntima desconhece, coisas que precisam de um tempo para acontecer. Todos se conheciam entre si, já tinham bebido o primeiro copo de cerveja gelada e não precisavam de articular o seu português para se fazerem entender. Eu, sabia-o desde o início, é que vim baralhar um pouco as regras do jogo e introduzir um elemento de novidade no grupo – um papel que, convenhamos, tirando uma certa timidez que ainda me deixa sem graça nos minutos iniciais, me agrada.
Assim que nos acostumámos à presença física uns dos outros ― curiosa, muito curiosa, essa coisa de termos um retrato robô pronto, que é preciso agora ajustar à pessoa que passa a estar, ao vivo e a cores, na nossa frente, do nosso lado… ―, e que eu desacelerei o meu sotaque lusitano, tudo fluiu naturalmente. E o resto do serão, na companhia do Ricardo, do Marco, do Leandro, do Ludo, de J. e de outras pessoas que se juntaram a nós, foi o que era suposto ter sido: um encontro de amigos e uma forma muito prazenteira de eu assinalar o meu regresso a Belo Horizonte.


O apartamento de Marco, onde ficaram Ricardo e Leandro, acabou por funcionar como quartel-general, onde as tropas se reuniam, em amena cavaqueira ― na verdade, as conversas eram calorosas; amena esteve quase sempre a temperatura em BH, apesar dos protestos veementes da infantaria carioca, habituada a um Inverno de trinta e muitos graus! Rsssss ―, ao redor de taças de sorvete com generosas colheradas de doce de leite Viçosa (um vício de Marco altamente contagiante, tanto que eu, antes de me ir embora da cidade, fui ao Mercado Central abastecer-me de tão precioso levanta-moral). Como Marco é um rapaz recatado(?), estou, até hoje, em crer que o entra e sai de tanto homem junto naqueles dias terá provocado um ou outro franzir de sobrolho na portaria do prédio. Mas tudo decorreu sempre no maior decoro… até mesmo naquela manhã de domingo, em que eu, Marco e Ludo, depois de termos varado a madrugada na Jô ― a mais badalada e elitista boate gay da capital mineira, com direito a descamisados sem ruga no peito nem prega no colarinho, gogo boys rebolativos, cenas a três, cenas a dois e cenas múltiplas, mas sem que ninguém se tenha de sentir desconfortável por isso ―, irrompemos pelo apartamento e acordámos Ricardo, Leandro e Arthur na batucada (os dois primeiros ficaram de molho devido ao clima “ameno”; já Arthur, o namorado de Marco, aproveitou a desculpa para ficar a dormir que nem um justo). Para compensar, havíamos passado antes na padaria e comprado pão fresco e broa mineira (que, para minha surpresa, leva coco!) para o primeiro café do dia da rapaziada. Vencidos pelo cansaço, Marco e Ludo, que já foram namorados e hoje são os melhores amigos, "apagaram" na cama de casal; não sem antes me oferecerem, encarecidamente, uma vaga. Achei melhor declinar o convite, não por nós ― que somos todos rapazes de família! Rsssss ―, mas por ter a certeza de que não se escapa incólume duas vezes de uma situação embaraçosa.
[Momento rewind: final de noite na Jô, ainda tomados pelo álcool, eu e os rapazes achámos por bem realizar, como lhe poderei chamar sem melindrar os profissionais do ramo?, uma pequena performance num dos queijos onde antes tinham actuado os gogo boys].
Dessa vez, felizmente, não houve fotos para mais tarde recordar, mas desta feita eu sabia que não teríamos a mesma sorte, pois o “capeta” andava de máquina à espreita… Fui flagrado sim, mas sozinho, no sofá da sala, antes de me levantar estoicamente para acompanhar os madrugadores de plantão numa incursão à feira dominical da avenida Afonso Pena ― e lá fui eu, não muito viçoso, mas ainda assim airoso, sem óculos escuros para aliviar a ressaca, de caveira ao peito e correntes à cintura!


“Meu pai é que tinha razão… Como é que uma pessoa do meu nível social e intelectual poderia ficar com uma bichinha afectada como você”. Estou sentado a duas mesas de distância, mas ainda assim ouço, sem esforço algum, todo o desenrolar da novela que ele, “a bichinha afectada” em pessoa, conta com detalhes sumarentos.
Na realidade, ele fala para os seus dois amigos, um homem e uma mulher que mal abrem a boca, mas o seu tom de voz faz com que boa parte dos transeuntes da calçada, dos restantes clientes e dos empregados que àquela hora serviam à mesa no Café com Letras, um espaço para lá de simpático na Antônio de Albuquerque, ficasse a par do seu desaire amoroso e de como o “namorado o maltratava só pelo facto de deixar a escova de dentes molhada na mesa”…
BH é hoje, para minha relativa surpresa, uma cidade cada vez mais gay friendly. Claro que não nos podemos deixar iludir pelas aparências, até porque os mineiros são conhecidos pelo seu conservadorismo, mas o certo é que, além de se multiplicarem na cidade vários espaços assumidamente gays, é fácil detectar na rua ― e em pontos públicos tão diversos como o Mercado Central ou a Feira de Artesanato, que possui mesmo um Ponto G! ― a presença de “colegas”.
E isso, às vezes, acontece mesmo em lugares inusitados, como é o caso do MP5, um clube-galeria, lá para os lados da avenida Raja Gabaglia, onde insisti em ir numa terça-feira à noite. Nem Marco nem J. conheciam o espaço, mas a minha experiência anterior tinha-me revelado um local animado, com boa batida electrónica e gente bonita. Chegados ali, não demorámos nem cinco minutos a perceber que a casa, além de meio vazia, estava por conta dos rapazes. Rapazes que gostam de rapazes, entenda-se. Enfim, não arrepiámos caminho de imediato, dançámos, fizemos por não entrar em rota de colisão com a “loura alucinada”, tirámos as fotos da praxe ao colo do patinho cintilante da entrada – não tirem conclusões precipitadas, o pato é uma graça! Rssssssss ― e acabámos num posto de abastecimento, a aquecer cachorros com molho cheddar no microndas. De brinde, além de animarmos a noite dos pobres miúdos que trabalhavam sem música no posto, ainda levámos para casa porta-sapatos.


Nesta minha passagem por “Belzonte” ― piores do que nós, portugueses, para “engolir" sílabas, só mesmo os mineiros, sobretudo os do interior, que ainda assim têm um sotaque cantado delicioso ―, fui quase sempre apresentado como “amigo do Marco”. O Marco, é bom que se diga, além de excelente pessoa, é um advogado que trabalha no duro para se afirmar, orgulho do pai, da mãe e dos amigos. Marco é também discreto na sua postura perante o mundo e a sociedade, mas muita gente à sua volta tem sabido, progressivamente, da sua orientação sexual. Logo, ser apresentado como “amigo do Marco” acabou por ter um peso e por, desde cedo, me dar uma “cor” à qual não estou habituado.
Não vou dizer que encarei isso de ânimo leve, mas, pela primeira vez na minha vida, aceitei não fazer disso um cavalo de batalha. Aceitei, inclusive, que muitas daquelas pessoas, que não tinham qualquer juízo prévio a meu respeito, fizessem as suas deduções. Se me incomodou? Incomodou um pouco, não vou mentir, mas ajudou-me também a constatar que a grande maioria daquelas pessoas encara a homossexualidade de forma aberta. Tão aberta que se permitem mesmo fazer algumas piadas a respeito, o que é sempre bom para quebrar o gelo.
Entre todas elas, houve uma com quem acabei por conviver de muito perto, até porque foi ela, na ausência de Marco ou Ludo, a minha grande companhia nas tardes de ócio. J. é o que se pode chamar, se quisermos colocar um rótulo, de fag hag, uma espécie de Grace na vida do Will/Marco. A cumplicidade entre os dois é algo muito bonito de sentir, mas foi um processo que exigiu amadurecimento de parte a parte: J., como tanta mulher que se vê rodeada de gays e passa a fazer disso uma realidade, demorou a perceber que tinha de ter a sua vida, os seus amigos e os seus amores fora deste círculo restrito; Marco aprendeu que pode tê-la sempre por perto, mas que há coisas que ela precisa viver sem tê-lo ao pé para apagar os fogos.
Conversei muito com J. Passeámos no shopping, tomámos chocolate quente no Kahlua, almoçámos no Minas Clube, estivemos na sua casa a ouvir música, a ver fotos de família… Ela falou-me dela e quis saber de mim. E eu, que gosto tanto de observar as mulheres, de ver com elas mexem no cabelo, como se movimentam, como tocam, fiquei fascinado com a espontaneidade e a graciosidade de J. ― mesmo quando a flagrava a tentar medir a minha reacção à passagem de outros homens ou quando ela, sem dar parte de fraca, armou um encontro “casual” entre mim e um seu vizinho gay… J. tornou-se, em poucos dias, uma amiga querida e devolveu-me a certeza de que eu, por muitas voltas que a vida dê, vou sempre viver rodeado de mulheres. Elas fazem-me muito bem.

(continua…)